Na suntuosa mansão de Conde Harmand, logo após as copeiras terminarem de
retirar a mesa do café, uma carta chega. O próprio Christopher Albert Junas Richmore
Harmand, senhor de cinquenta e alguns anos, espessa barba grisalha e estatura
mediana, pega-a da bandeja de uma empregada.
A carta tem o selo Real. Ele abre e lê ansioso, com os óculos pendendo
do nariz:
“Sua Majestade, o Rei Lucius Terceiro, e seu neto e herdeiro, o príncipe
Andy Mideline, convidam o Conde Christopher Albert Junas Richmore
Harmand, sua estimada filha Rose Laetitia Junas Philip Richmore Harmand e
prezada família para um almoço no Palácio de Pedra, no Primeiro dia da Lua
Cheia de Pentáster.
Sua presença nos será honrosa.
Atenciosamente,
Uli Campbell – Primeiro Conselheiro Real e Oficial
Chefe da Corte”.
Harmand
abre um grande sorriso. Trata de mandar um de seus funcionários, seu contador
pessoal Lorence Dalagar, a quem tinha acabado de receber para discutir futuros
investimentos, chamar sua filha.
Lorence não se importa por ser tratado como um empregado pessoal quando
está ali, é bem pago para isso e se sente “da casa”. Sabe que Harmand trata
absolutamente todos os seres humanos ao seu redor dessa maneira: sua família,
inclusive. Ele sobe as escadas de quatro lances, bem escondida no fundo da
casa, e vai procurar a caçula do Conde em seu quarto.
Rose, não está nada preocupada com cartas de reis, está pouco se importando
para isso. Ela brinca com sua gata Bianca, de pelos longos, brancos, com uma
mancha preta sobre o olho direito, sentada sobre o tapete felpudo em frente à
escrivaninha, arrastando um pequeno arranjo de plumas amarrado em um barbante.
Bianca bate a pata macia diversas vezes no seu brinquedo, esperando em
vão algum resultado. O único que consegue é o sorriso doce da garota.
O homem bate na porta. Rose deixa o brinquedo no chão, delicadamente.
Corre para abrir:
– Meu amor! – sorri abertamente, num sussurro animado, olhando para fora da
porta – Esqueceu que não pode vir aqui? Se o meu pai descobre nossas cabeças
rolam, sabia?
– Não foi por causa disso que eu vim. Não agora, claro. – sorri malicioso – Seu
pai te chama.
Ela entorta a boca numa expressão entediada:
– O que ele quer desta vez?
– Acho que vocês receberam um convite do rei. Para um almoço, eu acho.
Rose arregala os olhos:
– O quê? O rei respondeu? Essa não! Mas que merda!
– Olha a boca, menininha. – toca sua bela boca com a ponta do dedo.
– Eles não podem separar a gente,
Lorence! – agarra seu colarinho e puxa-o para perto dela, carente, sem nem
mesmo deixá-lo falar.
Ele a afasta com cuidado, sorrindo:
– Calma, Rose, se segure. Lembra-se das
cabeças rolando? Ninguém vai separar a gente, entendeu? Nem mesmo o rei. Agora
é melhor descer ou seu pai vai ficar nervoso com você, e eu... – dá um beijo na
moça – não quero que ninguém… – dá outro – fique nervoso… – e outro – com a
minha lindinha. Agora desce.
– Está bem… – resmunga.
A menina desce as escadas olhando para ele, que permanece lá em cima, de
um jeito charmoso.
Lorence é um belo rapaz, loiro, de vinte e quatro anos. Possui cabelos
ondulados que chegam ao fim do pescoço, barba bem aparada e um ar
aristocrático, apesar de não ser um nobre. Não leva Rose tão a sério quanto ela
pensa, mas também não confessa a si mesmo o que realmente quer com esse
relacionamento. Ela é bonita, esperta e gosta dele: o que ele pode perder com
isso?
Rose chega até o pai, que não tem nem ideia do que aconteceu lá e nem do
que anda acontecendo há mais de seis meses. Harmand percebe a presença da filha
na sala e começa a contar:
– Sabe quem mandou esta carta que está agora na minha mão?
– Não, papai. Quem mandou a carta que está agora na sua mão? – brinca.
– Um oficial da corte do rei Lucius Terceiro! E sabe o que ela diz?
– É claro que não, papai. – responde entediada roubando um biscoito da bomboniere
– Se eu não sabia nem quem tinha mandado, como é que eu vou saber o que está
escrito?
Ele a ignora, pois está nos Céus da grandiloquência:
– Está dizendo que o rei e que o seu futuro
noivo nos convidam para um almoço no palácio depois de amanhã. Ah, Rose! –
aperta sua bochecha – Você me deixa tão orgulhoso!
Oh, puxa, deve ser a primeira vez na vida que ele diz isso a ela. Não
esperava ocasião pior.
– E como é esse meu “futuro noivo”, meu pai? – pergunta aborrecida,
esfregando a bochecha dolorida – Já que nem mesmo isso eu sei desse homem.
O Conde anda pela grande sala repleta de tapetes e com mais sofás que a
própria loja que os expõe, com o punho alto, gesticulando muito:
– Pelo que andei me informando, ele tem dois metros de altura, cabelos
castanhos e longos e lindos olhos verdes, que mais parecem esmeraldas valiosas!
– fala como se seus olhos parecendo joias lhe aumentassem ainda mais o valor
como marido, afinal, mulheres adoram isso, não? – Sabe esgrima, equitação, sabe
sobre política... Acredite, minha filha, te arranjei o melhor pretendente que
qualquer garota poderia sonhar!
– Qualquer uma… – repete desanimada, com um biquinho frustrado escapando
timidamente – Mas não está nada definido ainda, está?
– E se Deus Pai gostar de nós, Rose, você não vai estragar tudo.
Christopher se retira da sala. Para no corredor uma empregada e lhe diz:
– Providencie tudo para que depois de amanhã minha filha esteja a mais
linda de todas as aldéas, entendeu?
– Mas ela já é, meu Senhor. – responde a empregada olhando a menina
simpaticamente.
– Mas terá que estar ainda mais para esse almoço.
– Sim, Senhor. – responde servil.
Rose ergue as sobrancelhas franzidas e entorta o biquinho para o lado
enquanto vê seu pai partir. Resmunga baixinho:
– Merda…
***
–Não me diga que puderam fazer isso com o meu
filhotinho. – suspira a velha Ada, apavorada com a frieza do rei.
– Eu também não me conformo! –
protesta Poler – Foi por isso que vim aqui, debaixo dos brincos-de-princesa.
Queria ficar sozinho.
– E nem isso conseguiu, pobrezinho.
– Imagine! Estou achando ótimo estar
aqui contigo. Tu transmites paz. O que é difícil de se encontrar por aqui.
– Venha aqui. – convida a velha
abrindo os braços – Está precisando de alguém, não está?
Poler hesita, a olha um pouco de
lado. Não é alguém acostumado a grandes contatos afetivos, Andy demorou anos
para dobrá-lo.
Mas a anciã tem esse poder de desmontar as fortalezas e o Conselheiro se
sente irresistivelmente atraído pela sua energia maternal. Vai se ajoelhando
devagar e a velha o abraça com naturalidade.
Ele se protege nos braços delicados e carinhosos da senhora, sentindo seu
perfume de incenso. Ada passa a mão tão seca nos cabelos encaracolados e macios
de Poler. Era o que ela queria fazer desde que o viu. É um cabelo moreno, brilhante,
cheio de cachinhos. Alguns fios brancos se misturam aqui e ali por entre as
mechas, mas ainda eram poucos.
Poler chora de raiva. Não sabe explicar, mas não conseguiu controlar essa
vontade. A velha senhora tinha algo a ver com isso. Ela não quer fazer ninguém
sair como entrou. Quer que saiam mais felizes, ou pelo menos, aliviados. Poler
decide não tentar mais esconder a tristeza, e sim relaxar nos braços
acolhedores da sábia senhora. Aproveitar do carinho há tanto tempo esquecido
por um homem adulto e sozinho como ele.
Andy sente uma energia forte e
acolhedora vinda dos pensamentos de sua mãe espiritual já que agora ela sabia
da sua situação. Ela aproveitou a energia vinda da preocupação de Poler com ele
e transformou em conforto para sua alma. Andy sorri e lhe agradece em
pensamento.
Já comeu todo o seu pão, mas ainda sente fome. Não sabe nem que horas
são, se é dia ou noite. A porta abre de repente:
– Comida? – se anima.
Não era comida, era o rei. Andy se
enfurece com sua presença:
– Desculpe-me a franqueza, mas no
momento preferia um pedaço de pão podre
a Vossa Majestade na minha frente!
– Entendo. Mas eu não vim aqui
consolá-lo. Vim apenas avisar que já fiz o que tentou me impedir: convidei
Harmand e sua filha para um almoço depois de amanhã.
– Oh, e por que não amanhã? – sorri
irônico.
– Está um lixo. – sua face contrai
em desprezo – Amanhã daremos um jeito em você. E nesse almoço, Andy, eu não
admito falhas.
– Acha que me assusta falando assim?
Se estou um lixo agora é por culpa sua! Graças a você estou cheio de feridas
agora! Nada disso vai sair até amanhã, sabia? E se essa talzinha quiser
reclamar de qualquer coisa, eu posso mostrar porque ela não é bem-vinda!
O rancor do velho rei em relação ao
neto parecia maior que do próprio em relação a ele – e ele não tinha sequer
apanhado! – e isso é demonstrado em sua resposta descabida e assustadora:
– Se você cometer um erro sequer, eu
mando te matar, Andy!
– Então está falando com um homem
morto, Lucius! Agora saia daqui! Saia!!
O Rei balança a cabeça. Vira as costas e vai embora. Andy contrai o cenho
e os lábios. Isso pelo menos significa que depois de amanhã sairá dali, não?
Em alguns minutos, porém, Andy é surpreendido pela chegada de dois
soldados.
Eles vêm depressa, desprendem os braços do príncipe e o agarram
fortemente. Levam-no escada a baixo, quase o arrastando pelos degraus, sem mal
dar tempo dele acompanhar seus passos, com as pernas doloridas. Num determinado
trecho, param de descer.
Andy acha que seria solto ali, mas não é o que acontece.
Outra passagem os leva para outros degraus que começam a subir com a
mesma truculência com que tinham descido até então. Isso os levaria para outra
parte da torre. Andy reconhece esse caminho de imediato: é para a maldita sala
do carrasco!
Não estava sendo libertado! Estava voltando, voltando para a dor!
Não suporta a ideia e trava os pés no chão com firmeza, tentando parar os
dois homens. Assim que os segura, tenta soltar os braços puxando com força.
– Me deixe ir! Eu não vou subir mais!
– São ordens do rei! – responde o soldado, lutando tanto para segurá-lo
que o machuca.
Andy fica ainda mais nervoso, luta mais, sua camisa imunda rasga
ruidosamente nas mãos que o agarravam. Está conseguindo.
Um soldado se irrita e saca a espada para ameaçá-lo. Na deixa dele, Andy
solta um dos braços e usa o preso para jogar um soldado em cima do outro. O
barulho das armaduras se chocando ressoa pela escadaria.
Braços soltos, Andy finalmente consegue respirar e vê que o soldado caído
derrubou a espada. Abre bem os olhos e age rápido, roubando-a. Quer correr, mas
não tem forças. Tem medo, mas está determinado a se salvar. Antes que o soldado
de costas para ele consiga erguer-se, segura-o pelos cabelos levantando-o do
chão.
– Fique longe. – avisa ao outro, já de pé.
A espada é colocada junto à garganta do refém, mas seu punho está trêmulo
e o seu oponente percebe isso.
O soldado sorri, tem tanta certeza de sua fraqueza que o ataca mesmo
assim. Andy, porém, reage usando seu refém como escudo e o rapaz fura o próprio
companheiro.
O jovem alvejado arregala os olhos, mirando incrédulo seu assassino
involuntário que solta a espada e ergue os braços, num impulso, deixando-a
presa ao seu corpo enrijecido de dor.
– Oh! Oh, Deus Pai...
Assim que ele cai, agonizante, e o cheiro de sangue sobe tomando o
ambiente, o desespero toma a face do soldado assassino. O que foi que ele fez?
Levanta os olhos para o prisioneiro trêmulo e Andy pode ver o ódio
brotando neles devagar, assim como a face se transfigurando. E mais uma vez o
medo ultrapassa a dor e a Deusa Mãe grita mais que o Deus das Almas, pedindo
que sobreviva:
Antes que pudesse pensar, Andy passa a ponta da espada, num único e
preciso movimento de esgrima, na garganta do soldado que cai sobre o
companheiro, encharcando-o com seu sangue. O príncipe sentiu, pela primeira
vez, a resistência de um corpo vivo sob o fio de sua lâmina.
Que sensação… horrível.
Andy treme. Senta exausto no chão, joga a espada para longe. Sua cabeça
dói. Não voltará para as garras do carrasco. Não voltará.
2 comentários:
Má , realmente esta parte 3 mexeu com minhas emoções
ao ver o sofrimento de Andy.mas ao mesmo tempo vamos nos encontrando com a linda Rose e outros personagens para tirar um pouco a tensão. Será que vamos ter casamento? Ou será que Ian e a pequena bruxa vão fazer alguma coisa ? Este livro esta cada dia melhor. Até a próxima segunda. Bjs
Tadinho do Andy... Você sabe que eu não gosto da Rose, mas colocar ela brincando com um gatinho só faz mais difícil o meu trabalho de odiá-la. Hhahahahahaha, droga!
Postar um comentário