A vida não pergunta o tempo que cada um necessita
para se adaptar a uma nova realidade. A vida não se importa se é aprovada ou
não pelas novidades que ela inventa. A vida simplesmente segue, um pouco surda
e insensível às vezes, talvez, mas na maior parte do tempo, apenas
incompreendida.
Foi difícil para aqueles onze jovens a quem Jason
cedeu seu sangue e sobrenome compreenderem o que a vida quis ensinar naquele
ano. Andrew se viu até mesmo dando margem à revolta: seu irmão mais velho,
aquele a quem as obrigações paternas deveriam cair com mais peso, estava dividindo
seu tempo de assistência à mãe com as perspectivas da nova família que pretende
criar junto à Barbara, e Andrew não iria arcar com a responsabilidade que, a
seu ver, não lhe pertence.
Evelyn estava mergulhada em sua missão de descobrir
qual doença acometeu seu pai e encontrar a cura para ela. Conseguiu alguns
voluntários – inclusive Jerome Abhann, que nunca perde uma oportunidade de
tentar agradá-la, ainda esperançoso, apesar dos sinais nulos de Evelyn – e
partiu finalmente para a aldeia mais próxima, Grohrs, atrás de mais livros, de
preferência técnicos e medicinais. A carroça foi abarrotada de artigos para
escambo, voltou com uma pilha deles. Todos muito velhos, alguns até com páginas
faltando, mas que serviram para trazer alegria e muito mais conhecimentos aos
conterrâneos. Partiu outras vezes em expedições atrás de novas ervas curadoras,
fez novos canteiros na aldeia, cultivou suas descobertas e por muitas vezes
lamentou não ter como experimentar os resultados em nenhum doente.
Ajudar a mãe Cedes a cuidar dos seus irmãos, porém,
realmente não era seu maior interesse.
Sendo assim, Lenora se desdobrava nessa função, mas
não conseguia o respeito necessário, principalmente dos irmãos mais velhos que
pareciam ingovernáveis desde a partida do pai. Sim, eles estavam terríveis. Era
como demonstravam sua tristeza. Andrew aliciou Francis e Dennis e juntos
chegavam até mesmo a fugir das obrigações, pegando os cavalos mansos da aldeia
e sumindo, irresponsavelmente. Faziam o oposto do que Jason os ensinou, o que chegava
a ser curioso. Era como se tivessem raiva dele, que decidiu os
abandonar.
Um ano mais jovem que Lenora, Andy não seguira os
caminhos da revolta. Ajudava a irmã, principalmente com os cuidados a Heidi. A
caçula tinha se tornado tão introvertida depois que Jason se foi que o sétimo
se via quase o imitando para tentar fazê-la sentir-se melhor: usava os mesmo
elogios que ele lhe fazia, assim como a maneira de ajudá-la a se vestir e os
mesmos carinhos em seus cabelos. Vê-lo em si mesmo era a forma que encontrava
de contornar a saudade dele.
Graças à irresponsabilidade dos irmãos mais velhos,
que deixavam a mãe tão consternada, e à ausência de Evelyn e Felix, os oito
mais jovens foram obrigados a amadurecer muito rápido. Lenora, com onze anos,
era como a mãe da casa. Parecia às vezes até mesmo se cansar dessa função e
Andy a pegava chorando enquanto lavava roupa na beira do rio. Sabia que era
principalmente pela falta que sentia do pai. Jason sempre a elogiava tanto
quando ela se mostrava madura, agora ela estava se saindo tão bem… e ele não
estava lá para ver. Soluçava sozinha torcendo camisas de seus irmãos ingratos.
Se percebia que Andy a seguira e tentava ajudá-la,
porém, brigava:
– O que está fazendo aqui? Quem está olhando os
outros? Volte para casa!
E obrigava o irmão mais novo a sair dali correndo.
Ele não se importava com a implicância dela, ficava chateado mesmo era com os irmãos
mais velhos e com os cabelos brancos que eles estavam rendendo à sua mãe. Mesmo
assim, era claro que todos sofriam do mesmo mal. Um mal crônico que só o tempo
iria curar: um imenso e doloroso coração partido.
Cedes não é mais a mesma. Parece ter perdido o
interesse pela vida - sim, aquela que é surda e insensível às vezes.
Quem sabe se Jason não tivesse sido um marido tão bom, que a deixasse tão
tranquila podendo contar com seu apoio em qualquer situação, não estaria
sofrendo como está agora. Quando pensaria que se pegaria reclamando por ter
tido um marido bom? Por que ele foi inventar de morrer, assim, no meio do
caminho?
Agora, enquanto sabe estar sendo poupada das
reclamações dos vizinhos quanto a seus filhos arruaceiros, fica remoendo todas
as perguntas que Jason nunca respondeu. Agora que ele não está por perto,
compensando suas dúvidas com carinho, todas parecem ter criado muito valor. De
onde ele veio? Que doença ele tinha? Por que quis vir se esconder do mundo em
Ecklacia? Ninguém nesse mundo poderia responder isso agora, e é o que mais
agonia aquela mulher.
Numa noite dessas, Evelyn esmigalhava uma erva que
tinha trazido do outro lado das montanhas, com a ponta dos dedos sentindo seu
aroma delicioso, tão distraída, quando o som dos passos de Andy chama sua
atenção.
Como sabia que era ele? Oras, quem mais sai de casa
assim tão quietinho durante a noite?
– Evelyn? – ele pergunta, notando-a ali perto.
“Quem mais além dela mesma?”, era a pergunta.
– Noite quente. – Andy sorri já perto dela – Vou
ouvir o concerto das cigarras. Quer vir?
Ela o acompanha. É mesmo um belo espetáculo. O
frescor da mata alivia o calor, os pés descalços dos irmãos deixam as folhas se
infiltrarem entre seus dedos. Andy vai entrando entre as árvores um pouco antes
de Evelyn, que o segue perguntando:
– Você viria de qualquer forma, não é? Mesmo que eu
tivesse negado te acompanhar.
Andy a olha por cima do ombro e sorri:
– É. Eu acho que sim.
Evelyn faz uma expressão um pouco desconfiada:
– Mas papai não dizia que você não podia entrar na
mata à noite?
– Dizia.
– Sempre achei que fosse obediente.
Andy dá de ombros sem responder. Muda de assunto:
– Vem. Do lado do córrego faz um som bonito. E é
mais fresco também.
O garoto encontra uma pedra ao lado do veio d’água
e senta serenamente dando um suspiro. Evelyn senta do seu lado. Suas pernas são
mais compridas e ela alcança a água com a pontinha dos pés.
As cigarras gritam, potentes, enquanto a água
sussurrante acaricia seus ouvidos. Os irmãos fecham os olhos e aproveitam o
momento.
Não se sabe quantos minutos passam. Talvez tenham
até sido muitos. Andy, ainda de olhos fechados, fala com a voz muito tranquila:
– Papai tinha medo que eu entrasse numa roda de
fadas e desaparecesse. Eu sei que era esse o motivo para me proibir de vir
aqui. Mas, sabe, ele não tinha porque se preocupar, por isso eu desobedeci. Só
por isso.
– E como pode ter tanta certeza? – Evelyn pergunta,
ainda de olhos fechados.
– Porque elas me disseram que não vão me levar.
A garota suspira, abre os olhos. Agora estão
cercados de discretos vagalumes. Apoiada nos braços, Evelyn relaxa soltando o
peso do corpo, deixando os ombros subirem. Sorri observando o bailar dos
insetos então vira os olhos para o irmão:
– Eu os vejo, sabia?
– Eu sei.
“Ah, sabe? E nunca falou nada?”, Evelyn franze o cenho e
até emburra. Volta a olhar os vagalumes:
– Mas não os ouço. Eles nunca falaram comigo. O que
explica isso, Andy?
O garoto dá de ombros, abraça as pernas, suas calças
estão cada vez mais rasgadas e ninguém vai consertá-las por enquanto:
– Você fala com eles?
Evelyn ergue as sobrancelhas ao máximo:
– Eu?
– Sim. Nunca falou com eles? Como quer que eles
falem com você então?
– Mas eles não escolhem as pessoas? Digo... eu
achei que...
Andy ri:
– Evelyn… Você é muito esperta. – aponta com seu
dedinho infantil o nariz da irmã – Mas não sabe tudo. – e mostra a língua para
ela, voltando a sorrir e abraçar as pernas.
A garota fica olhando para ele, até um pouco
insultada, apesar de ter sido óbvio o que ele disse. Mas foi seu irmão de dez
anos que falou isso, o que é realmente um insulto!
– Tá bem! E vai me ensinar então o que você sabe?
Andy suspira:
– Elementais não falam nossa língua normalmente.
Cada um tem sua linguagem específica. Fadas falam em saudrel, Elfos e
Ninfas em tylobel, Silfos em dreandalus... assim como os Faunos.
– fala pensativo – E chamuanda é a língua dos Dragões. Como nossa
linguagem para eles é diversão, eles gostam de usar rimas para se comunicarem
com a gente. Então é melhor saber rimar se quiser brincar também. – sorri.
– Como você sabe tudo isso? – diz Evelyn,
impressionada.
Andy tomba a cabeça para o lado:
– Faz alguns anos que a gente conversa.
A garota pergunta instigada:
– E que língua fala o tornado, Andy?
Então seu irmão a olha, os olhos verdes brilhantes,
mesmo naquela escuridão. Hesita.
– Eu... Eu não sei. – e mergulha num silêncio
pensativo, com o cenho baixo e tenso.
Evelyn o observa. Logo sua atenção volta aos
vagalumes. É estranho. Parecem ser só vagalumes mesmo. Nada de diferente hoje.
– Senhores vagalumes, como saber... se se eu falar
vão me responder?
Faz sua riminha improvisada e olha para o irmão
fazendo uma caretinha arrancando uma risada gostosa dele.
– Vamos, amigos, conheçam minha irmã. – ele fala –
É esperta, bonita e cheira maçã. – ri.
– Eu cheiro maçã? – sussurra curiosa.
– Não sei! Mas deixa eles descobrirem isso
sozinhos, ué! – responde também baixinho.
Os sons estridentes das cigarras começam a ser
entremeados com um barulhinho gostoso de guizos. Mas ainda é muito tímido.
– Vamos, amigos – chama Andy de novo – que a
conversa será boa. Ou Evelyn vai achar que veio aqui à toa! – ri.
Os irmãos brincam entre si, rimando e rindo, sem
nem repararem que os vagalumes começam a piscar com cada vez mais intensidade e
em várias cores diferentes.
– Meu irmão falou que vocês são falantes. Pena que
não conversamos antes.
– Evelyn veio aqui ouvir vocês. Falem “oi” pela
primeira vez.
Os sons das cigarras já não são mais os mesmos e é
possível distinguir uma doce melodia entre o cricrilar dos grilos. A sensação
confortante toma os corações do casal de irmãos e um sorriso quase bobo toma
seus lábios. Do outro lado do córrego, um pequeno ser se revela: tem um chapéu
pontudo, olhos minúsculos, redondos em um rosto liso quase inteiro formado pelo
seu largo nariz. No escuro é difícil vê-lo, pois não emite luz.
– Bielaroglitz! – Andy abre um grande sorriso ao
vê-lo.
Evelyn fica boquiaberta. Vai descendo devagar da
pedra, se aproximando da água para tentar ver melhor o pequeno ser. Quando ela
consegue focar seu olhar, pergunta tímida:
– V-veio falar comigo?
O duende dá um passo à frente e mergulha na água,
saltando no próximo instante como um sapo para fora, na margem oposta, bem na
frente de Evelyn, fazendo-a dar um grito de susto:
– Ahhh!!
Bielaroglitz gargalha com sua voz deveras exótica,
com a mão pequenina sobre a grande barriga que chacoalha debochado. Evelyn,
caída sentada, emburrou, até cruzando os braços. Andy, de cima da pedra, a
observa sorrindo sem jeito:
– Bem, foi um bom começo.
Ela o olha por baixo:
– Bom começo? Eu quase morri de susto!
– Evelyn… – explica pacientemente seu irmão tão
jovem – Fadas são assim mesmo, se queria algo sério veio para o lugar errado.
Vindo num zunido forte, no ombro de Andy pousa um
velho conhecido, o imenso besouro verde, brilhante. Evelyn segura o ar. Seu
irmão sorri, enquanto coça a orelha que chiava pelo seu zunido:
– Esse é Padipeleus. Um velho amigo de papai.
– Ele… é ele... – perde as palavras a garota.
A Fada sorri e faz uma reverência:
–Oh, querida mortal, não passe mal, não leve
susto. Pois é tão habitual um Elemental pular do arbusto.
Evelyn tenta responder:
– Obrigada, Senhor Padip-... oh, Céus! An… quero
dizer: é uma honra ouvir sua voz, eu qu- Droga! Não me vem rima nenhuma!
Dezenas de vozes agudas gargalham ao redor de
Evelyn fazendo suas bochechas queimarem de vergonha. Andy ri também, mas sem
intenção de deixá-la embaraçada. A Fada Padipeleus voa do ombro de Andy indo
pousar pesadamente no joelho de Evelyn que não tinha nem conseguido se reerguer
ainda da queda causada pelo duende. Ele a olha com carinho:
–Pequena Evelyn, a quem bem conheço, mesmo sem
nada falar. Não tenha medo de nós, e nem dedique-nos um altar. Somos parte do
teu sangue, como todos do teu lar. Mas apenas tu e aquele nos quiseram
encontrar. A Natureza tem voz e vida, como já ouvira falar. E nem fala assim
tão pouco como possa imaginar. Podemos contar contigo para vir nos visitar?
Ela, cujos olhos não poderiam abrir mais do que o
que já estavam abertos, faz um sinal afirmativo e incisivo com a cabeça. A
criatura luminosa sorri, vira a cabecinha para Andy:
–Tão tímida…
– Pois é. - ele responde.
Padipeleus levanta voo, desaparecendo há alguns
metros do chão, assim como seu rastro esverdeado e luminoso, sendo seguido
pelas demais Fadas. Evelyn observa o fenômeno que hoje lhe parecia ainda mais
fantástico. Quando tudo termina, ela olha para o irmão, incrédula:
– Você jura que não se espanta mais com isso?
Andy ri, pula da pedra enquanto os sons da noite
voltam à sua configuração habitual, que também era muito interessante:
– Ora, Evelyn, a realidade do louco é diferente. Se
as pessoas entendessem como ela pode ser legal, quem sabe tratassem a gente com
mais… consideração. – desmancha o sorriso.
Os dois vão saindo da mata, Evelyn está com o
coração palpitante. Tão emocionada e ansiosa…
– Andy, você e papai, vocês… conversavam sobre isso
tudo?
– Não. Eu não sei... – dá de ombros – De alguma
forma sentia que papai não gostava muito dessa minha ligação com eles. Ele
parecia ter tanto medo… Parecia que queria me poupar de alguma coisa. – entorta
a boca, passando a mão no braço – Do que, eu nunca vou saber, né?
– É. – lamenta sua irmã – Papai era tão estranho.
Os dois param no caminho, ficam num longo silêncio,
olhando o chão, revisitando lembranças. Andy levanta os olhos para a irmã:
– Hoje foi muito legal. A gente podia fazer mais
vezes.
Ela sorri, bagunça seu cabelo:
– Só pede para seu amigo duende não pular mais na
minha cara.
– Pede você! Só precisa decorar o nome dele…
– O nome dele? Essa não… – reclama.
– Bielaroglitz. Fala.
– Bielo-...
– Bielaroglitz!
– Bielogliters!
– Que fiasco, Evelyn!
Ela o empurra para o lado desequilibrando-o
enquanto gargalham a caminho de casa.
2 comentários:
Assim tu me faz chorar! :( :)
É sempre triste o desencarne de um pai, mesmo sabendo que a vida continua do outro lado.... Evelyn agora verá a vida de um outro jeito......
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