Em Ekclacia ocorre uma grande comemoração. Um
casamento onde muito se bebe, muito se dança, e a espera dos noivos é
interminável. São três dias de festa: uma prévia, o do casamento em si, repleto
de belos e divertidos rituais coletivos, e mais um de “estica” depois - mas
nesse os pobres noivos já estão livres para as tão aguardadas núpcias.
As crianças, que não sabem nada sobre núpcias,
querem apenas se divertir. Afinal, suas mães não permitem em nenhuma outra
ocasião que elas comam doces o dia inteiro.
E lá estão eles, os confeitos, perfumados e
enfeitados por folhas de outono e flores do campo, organizados em tecidos
mimosos sobre mesas sem fim. Toda a vizinhança tinha ajudado a elaborá-los,
especialmente as mulheres, em rodas recheadas de conselhos nupciais para a
jovem Marissa Abhann: a ruiva mais ruiva de Ecklacia, com seus olhos imensos e
claríssimos perdidos em um mar de sardas.
– Não o deixe beber todos os dias! – recomendou
sobre o noivo Jesse Moya, na ocasião, a senhora Ilome Tristian, separando as
pequenas flores purpúreas de um ramo de espinheira real.
– Tente não ter tantos filhos... – segredou Cedes
Mideline com cuidado para que as filhas não ouvissem.
– Cuidado com os cogumelos! – alertou Sebes
Moya balançando a colher de pau à beira do forno à lenha – Não cozinhe demais!
São gostosos, mas podem desarranjar a barriga!
Marissa ouviu tudo com atenção, os imensos olhos
arregalados, balançando a cabeça como se fizesse anotações mentais.
Barbara Caol ouviu também os conselhos, com
carinho, enquanto enrolava as massinhas de farinha, açúcar de beterraba e
sementes crocantes, deixando para a futura cunhada Evelyn decorar, sempre tão
introspectiva que nem parecia ouvir as conversas ao redor.
A filha da viúva Caol estava se preparando
intimamente para quando chegasse a vez de se casar com seu querido Felix. Ah,
parecia tão próximo… As primeiras pedras da construção de sua futura casa já
estavam sendo firmadas, pouco a pouco, depois de muito escolherem o terreno
ideal, baseados até nas configurações astrais. Olga tinha até cedido algumas
pedras da própria mureta para adiantar seu sonho. Era uma boa sogra a viúva, o
que até andou estimulando Andrew a finalmente falar com Samya.
Na festa, quando a cerveja sobe, ele a tira para
dançar, provando que, como dançarino, o segundo filho dos Mideline é um ótimo
contador de histórias. Apesar da falta de ritmo, tira sorrisos de Samya quem
sabe até mais do que se fizesse os passos direito.
As rodas são tão bem coreografadas que parecem
organismos vivos. Até os mais velhos se arriscam a entrar, embora saiam rápido.
Realmente não é tão fácil acompanhar, mas com certeza é muito divertido. Quem
sai da roda sai rindo, ofegante. Algumas crianças, como a animada Lenora,
parecem não se cansar nunca! Ela pula, dá as mãos a um vizinho para fazer uma
volta, depois a um tio, depois à melhor amiga Marien Tristian, depois roda
sozinha no centro, gritando e erguendo os braços, espalhando a saia do vestido
novo ao redor, faceira. Jason a observa sorrindo, depois de sair da roda pela
terceira vez, abatido, pálido. Cedes o observa e o segue.
– Os quarenta anos se aproximam. – ri seu marido,
quase sem fôlego, se apoiando curvado sobre uma mesa de doces.
As sombras das bandeirolas penduradas na praça
central desenham sobre ele formas vivas e festivas, mas não é isso que a aldeã
vê no semblante dele: Jason parece esvaído de energia. Ela sorri com ar
preocupado:
– No casamento de Walter e Amelie Jenniz nós
dançamos os três dias, sem parar.
Jason senta, o rosto comprimido de dor, deixando a
cabeça tombar para trás. Puxa o ar com dificuldade:
– Bons tempos, meu amor. Quanto faz? – puxa o ar –
Dez anos?
Dez anos. Isso era o quanto Jason parecia ter
envelhecido de um ano para cá. Cedes mantém o cenho tenso, vendo como ele ainda
se recusa a falar do que sente. Como se recusa a falar de onde veio e sobre
tantas outras coisas. Sua esposa o ama mesmo assim. Não pergunta demais, não se
importa. Só não consegue ficar indiferente a essas dores que estão tomando
Jason com cada vez mais frequência. Não suporta vê-lo assim. Antes que possa
comentar algo, o estrangeiro abre um belo sorriso:
– Lembra do nosso casamento?
Cedes vai abrindo um sorriso devagar, senta ao seu
lado:
– Como não? Eu guardei o vestido para Evelyn, mas
ela parece não ter pressa…
Jason acaricia o rosto da esposa com as mãos
geladas, desmanchando seu sorriso, fazendo voltar a seu rosto a preocupação:
– Cedes… Eu… eu fiz você feliz? Nesses vinte anos…
você foi uma mulher feliz?
Ela balança a cabeça, sorri abertamente, segura sua
mão, uma lágrima escapa de seus cílios cada vez mais escassos:
– Todos os dias, Jason. – sussurra com os lábios
tensos – Todos os dias.
A música persiste, animada. É raro por lá que
alguém não saiba tocar algum instrumento, nem que seja a percussão. Os
convidados e até os noivos alternam-se para que todos possam dançar e comer
quando assim desejarem. Em alguns momentos, porém, quase todos estão tocando,
liberando a praça apenas para os mais jovens dançarem. Quando isso acontece a
música fica tão poderosa que parece capaz de atrair magia.
Andy fecha os olhos em frente ao imenso grupo
musical. Inspira fundo, chega a prender o ar e fechar os punhos. O Elemento Ar
é tão poderoso quando carregado de sons, pode senti-lo vibrar por dentro de si,
até ir parar em seu estômago. É como se comesse música.
Sua irmã mais velha, cujas tranças pendem hoje
sobre um formoso vestido lilás, se aproxima por trás e bagunça seus cabelos,
parecendo adivinhar seus pensamentos:
– Dá para fingir que é uma criança normal e ir
brincar com os outros?
Andy olha para cima ainda ao falar com ela, mas não
tanto:
– Eu sou uma criança normal, Evelyn.
Ela sorri, o observa demoradamente. Acha seus olhos
verdes tão bonitos, seu olhar tão firme. Seu irmão tem olhos sinceros como os
do pai. Olhos que enxergam fadas, pensa:
– Vai brincar então, menino normal. – zomba.
Andy lança um olhar comprido para o grupo de
crianças, um pouco tímido. Desde o incidente com o tornado ninguém mais o via
como antes, parecia envolto por um véu de… esquisitice. Sabia que o chamavam de mentiroso e de maluco pelas
suas costas. Suspira. É difícil ser diferente dentro de um grupo tão pequeno.
Volta os olhos para Evelyn que sorri ainda mais, com seu jeito calmo e
levemente malicioso de quem parece saber alguma coisa, mas que mantém secreta
para seu próprio deleite. Ela, tão quietinha, é bem mais esperta que ele,
percebe Andy. Ela vê e ouve as coisas, mas guarda para si. Aprendeu isso com
seu pai. Vive seu mundo mágico em silêncio, sem ser julgada. É isso. Silêncio.
Andy sorri para Evelyn finalmente, não é preciso dizer nada. Corre para onde
estão as outras crianças. Ainda era o primeiro dia de festa.
Evelyn sorri enquanto o irmão se afasta, cruza os
braços, tomba a cabeça meio de lado, suspira. Não sabe bem o que ele entendeu
do que queria lhe mostrar. Ele é muito jovem, extremamente sincero e nem sempre
as pessoas entendem isso. Talvez fosse essa a lição de seu pai: o segredo é a
alma da comunicação com os Elementais. Não um segredo ruim, errado, apenas uma
necessária discrição. Eles se revelam a quem escolhem se revelar. Os três têm
sorte de terem sido escolhidos. Deveriam conversar sobre isso, entre eles, era
um sonho seu. Queria ter acesso a todo conhecimento possível sobre esses seres
fascinantes, um conhecimento que os livros não lhe dariam. Apenas seu pai,
apenas Jason Mideline teria respostas para tudo o que fervilhava na mente da
discreta cuidadora.
Evelyn procura o pai com os olhos. Não o vê nas
rodas, nem tocando os instrumentos. Vê Lenora dançando, pulando, gritando, ri
com ela: sua doidinha… Vê Felix dançando com Barbara, tão mais lento que o
resto da roda, num tempo só dos dois, a dança dos apaixonados. Andrew ainda
estava acompanhado de Samya, mas já tinha desistido de dançar. Evelyn os vê
pegando mais bebida e, do jeito que o irmão gesticulava, com certeza contava
uma grandiosa história. Então encontra o pai numa mesa distante, no lado oposto
da praça sentado no banco, desmanchado nos braços da mãe, já reunindo alguns
vizinhos ao redor. Entreabre os lábios finos, ficando alerta: todos parecem
preocupados…
– Pai? – sussurra, assustada – Pai! – grita,
atravessando a roda, indo de encontro à cena, acabando por chamar a atenção de
forma involuntária de boa parte dos aldeões.
Ao contrário do que receava Andy, um esquisito
podia brincar também. Na correria com os vizinhos, as crianças se afastaram do
núcleo da aldeia, se aproximando do bosque. Fazem um esconde-esconde
imenso, onde as meninas devem encontrar os meninos. Andy se oculta no meio das
árvores. Fica em silêncio, observando suas irmãs procurarem e encontrarem seus
irmãos. Vangloria-se por ter se escondido tão bem. Sorri satisfeito.
Os minutos se passam, o silêncio vai aumentando,
até demais: não daria para ouvir dali a música da praça? É estranho. Tantas
crianças estão envolvidas que Andy não sabe se a brincadeira acabou.
O leve som do farfalhar das folhas torna-se mais
intenso, como uma deliciosa música de uma orquestra orgânica, e logo aquela
sensação que tomou seu corpo no prenúncio do furacão começa a dominá-lo
novamente. Andy teme que seja outro tornado, mas antes de se deixar agoniar por
isso, ouve um ruído por trás. Pensa ser alguma menina o encontrando. Quando se
vira, no entanto, a visão que tem é bela e assustadora: um rapaz com cabelos
encaracolados e chifres de carneiro encara-o com seriedade.
Uma trepadeira está enroscada entre seus cornos, há
plantas brotadas de sua pele, e suas pernas são tais como as de um caprino.
Imóveis, os dois se encaram, admirados. O que mais tarde Andy saberia ser um
Fauno se aproxima. A luz do fim da tarde faz sua pele e pelos cintilarem um
dourado maravilhoso.
A voz do irmão mais velho de Andy soa gravemente ao
longe e o Fauno olha na direção dos chamados.
– Andy! Andy, onde você está?!
Andy olha também na mesma direção, mas não ousa
fazer nenhum som. Quando vira novamente para o Elemental, o mesmo já havia
desaparecido. Como por feitiço, Andy sente-se livre para gritar em resposta e
corre de encontro ao irmão, Felix, que lhe fala preocupado:
– Andy, venha comigo, nosso pai não está bem.
Os dois andam rápido, correm ao avistar a porta da
própria casa tomada por gente que abandonou as festividades para dar seu apoio
ao bom Jason. Andy sente as pernas bambearem, a garganta trava de medo. Os
jovens entram e veem todos os irmãos dentro do quarto, sua mãe chorando e seu
pai moribundo, tão pálido que era quase irreconhecível. Ele avista o sétimo e
chama-o com o resto de sua voz:
– Andy… venha cá…
– O que houve, pai? – pergunta aflito, enquanto
atende prontamente seu pedido – O que está acontecendo com o senhor?
É um imenso esforço para Jason respondê-lo:
– É esse meu coração, meu querido… ele sempre foi
mole, você sabe, – brinca, num sorriso carinhoso, numa tentativa de esconder a
dor – mas sempre me serviu direito. Mas parece que hoje, meu filho…
– Não, hoje não! Hoje ele vai trabalhar! Ele tem
que trabalhar até em dia de festa, pai! – implora o menino.
Seu pai sorri, toca seu ombro quase sem forças e
confidencia:
– Te chamei aqui, meu filho, só para te dizer algo
que sei que te importa… Sabe aquela vez, do tornado, ano p-passado?
– Claro, pai. Não consigo esquecer… – responde
enxugando as lágrimas.
– Então, Andy, eu só quero que saiba que eu
acreditei em você. Eu acreditei desde o princípio. – diante da surpresa do
menino, o pai completa – E sabe por quê? Porque você é um menino bom, que não
mente. Continue sendo esse bom menino que você é, Andy, nunca dê trabalho para
sua mãe…
– Sim, senhor. – resmunga, quase sem segurar o
choro.
Tem um terno sorriso como resposta. Sua mãe toma
seu lugar ao lado do marido, enquanto Andy vai ficando para trás. Abraça Felix
e pergunta:
– Ele também falou com você?
– Falou. Pediu desculpas, porque – soluça – não vai
poder ir ao meu casamento. – as lágrimas escorrem pesadamente.
Evelyn soluçava no lado oposto da cama: de que
adianta saber curar tantas coisas se não sabe o que seu pai tem? Se não pode
fazer nada por ele? Heidi sobe na cama, deita junto ao peito do pai, em
prantos:
– Não vá, papai, não vá embora… Nós te amamos
tanto!
As lágrimas também escapam dos olhos castanhos do
homem que tenta acariciar aqueles cabelos loiros, mas que vê sua força se
esvair, como se pequenos choques elétricos causados pela dor de seu peito
apertado aliados à falta de ar fossem queimando sua vitalidade, cada vez mais
depressa. Seus lábios esbranquiçados não conseguem mais pronunciar qualquer palavra.
Era de amor, só de amor que queria falar.
A música dentro daquela casa era agora a orquestra
de soluços de onze jovens, uma viúva e tantos outros que Jason conquistou com
sua gentileza e carinho. Um homem que veio de longe numa noite de tempestade…
Em vinte anos não parecia jamais ter pertencido a qualquer outro lugar. Era nativo
de Ecklacia como qualquer outro ali. E lá suas cinzas descansarão.
Jason se vai. Dentro daquele sentimento de
impotência e pesar, todos os irmãos crescem muito naquela noite. Em seu sofrido
suspiro final, quando os vizinhos começam a deixar a casa e a noite já vem
caindo, Evelyn observa os irmãos menores tomarem a cama e acompanharem Heidi,
em soluços cada vez menos desesperados e mais sentidos. Joshua, Samara e
Paulinne, Andy, que senta no chão e deita a cabeça no colchão sendo seguido por
Lenora, Dennis e Francis… Todos parecem derrotados pela dor, exaustos. Barbara
tinha ficado, consolava Felix, pois sabia pelo que passava, embora não tivesse
sido dessa forma que seu pai a deixara. Andrew abraçava sua mãe, tentava ser
forte, mas chorava mais do que ela.
Evelyn caminha devagar até a janela, abre a cortina
aos poucos, com cuidado, sentindo algo acalentador no coração.
Ao enfim mirar através do rústico vidro, inspira o
ar num susto, abrindo mais os belos olhos, vendo lá fora uma pequena multidão
cintilante:
O Fauno visto hoje por Andy coberto de pó
brilhante, acompanhado pelo enxame de fadas, agora silencioso, respeitoso. O
besouro verde pousado nos cornos de um cervo dourado que se aproxima cauteloso
da janela. Evelyn sente uma emoção desconcertante a tomar. Soluça sorrindo um
único riso, enquanto as lágrimas chegam a cegá-la, para depois se permitir
desabar cobrindo a boca com a ponta dos dedos. Eles vieram buscá-lo… eles vieram
buscar seu pai…
Fecha novamente a cortina e encosta a cabeça
na parede desmanchando-se em lágrimas. Era o momento mais lindo e triste de sua
vida.
3 comentários:
Linda cena do furacão conversando com Andy. A-D-O-R-O esses pedacinhos de magia surreal que você mistura de vez em quando na história. Lindo. <3
Aqui a autora nos mostra como Andy em tenra idade já possui o Dom de falar com os Elementais. Esta cena é mesmo marcante.
E desde então tudo ficou em paz... até que a Nação do Fogo atacou.
Mais uma cena magnífica, deu para imaginar tudo com clareza, principalmente os sons. Gosto muito da atmosfera bucólica e mágica da sua história ^^
Postar um comentário