segunda-feira, 3 de março de 2014

Capítulo 25 - "Preparativos"

 

Na manhã seguinte, na mesa do café, Andy conversa com seu Conselheiro preferido visivelmente mais calmo. Há uma infinidade de alimentos disponíveis, entre pães, queijos, castanhas, frutas e até mesmo flores que dividem espaço com sucos, leite e diversos chás ainda fumegantes. Seus olhos sorriem discretamente por trás do vapor que exala de sua xícara.
O rei chega até eles acompanhado de pequena comitiva de empregados. Sentando-se à cadeira ao seu lado, Lucius fita o neto com ar altivo e infla o peito para avisar:
– Já negociei seu casamento, Andy. Será logo.
– E esse logo é quando? – pergunta, dando mais um gole no chá.
– Esse logo é mês que vem.
O rapaz engasga arregalando os olhos, repetindo a cena do começo de tudo. Lucius ignora sua tosse e fala num tom tão prepotente que soa esnobe demais até mesmo para ele:
– Por mim seria amanhã mesmo, mas os preparativos exigem tempo. As costureiras logo irão visitar sua noiva.
Andy ouve balançando a cabeça, inconformado:
– Para que tanta pressa, Lucius? Por que não pode deixar as coisas fluírem? Eu acabei de conhecer a moça, agora vai pegá-la de susto com um bando de costureiras falando “há um mês você era uma menina, agora é uma noiva e em mais um mês será uma mulher casada”? Como acha que ela vai se sentir?
Não tem resposta, então continua:
– Você não pode mexer assim na vida das pessoas, Lucius! Se toda mudança precisa de tempo, uma dessa importância precisa de muito mais!
O rei lhe encara com gravidade:
– Quanto tempo mais tem um velho como eu, Andy? Sim, eu estou com pressa para ver meus bisnetos porque posso morrer a qualquer momento!
A discussão deixa a mesa e todo o palácio em silêncio. Andy fita o avô, suplicante. Não sabe mais o que dizer. Quer entendê-lo sim, ele é idoso: mas, por isso mesmo, ele já viveu sua vida! E agora quer viver a dele também? Não é justo!
– Não, meu avô, isso é mentira sua, pois bisnetos você tem aos montes por aí! Isso é implicância comigo! Pura e simples! Por que, meu avô? Por quê?
– Porque o rei sou eu. – levanta-se, acha que com essa frase qualquer questão pode ser encerrada.
Não para Andy, que brada:
– Quantas vezes eu preciso repetir até que entenda que isso te faz responsável pela organização do reino e não meu dono?! Se está sem nada para fazer, eu te deixo algum trabalho no governo! – levanta-se também.
Talvez em alguma futura aula o herdeiro deva aprender que mexer no ponto fraco de alguém nunca vai colocá-lo numa situação mais confortável, bem pelo contrário. Tanto que a face do rei parece incendiar depois de sua sentença. Lucius urra:
– Cale-se ou volta para a masmorra!!
Um tenta superar o outro em volume, enquanto o resto do reino tenta fazer cada vez mais silêncio. Poler acha necessário interferir:
– Por favor, Vossa Majestade, não posso permitir que tal coisa se repita. Sua Alteza é um herdeiro e não um criminoso. Assim como não devia ter acontecido uma primeira vez, um simples desentendimento não pode acarretar pena tão grave, ainda mais a um membro da realeza.
– Já entendi, Poler, não farei isso. – corrige-se o rei, sem paciência – Mas ainda quero Andy calado.
– Não vou calar. É minha vida! Minha vida é tudo que eu tenho e pertence apenas a mi-…
Pah!!!
A bofetada estoura quente contra seu rosto. Uma interjeição de susto toma conta do lugar.
O peito do jovem se enche de fúria e de mágoa, como uma água morna e pesada pronta para espalhar-se pelo corpo depois de tomar seu coração. Essa energia densa chega até seu punho e tenta guiá-lo. Mas Andy resiste firmemente: não quer perder a razão. Ele levanta seu rosto novamente, retoma sua postura e cospe sua frase final:
– Quem perde o dom do diálogo tende a comportar-se como o resto dos animais. – e deixa a mesa.
A tendência de Poler é seguir Andy, mas dessa vez não sabe o que poderia fazer. Permanece sentado, olhando para o rei, assustado com a própria atitude. Sim, está velho, e cada dia mais louco. Porém, orgulhoso como sempre, não corrigiria seus erros. Não desmarcaria o casamento, nem mesmo remarcaria.
Emanuelle, ainda que de longe, observava a cena ajeitando o bastidor de seu bordado e deixa uma pontinha de sorriso escapar. Ainda ouvindo o som do tapa em sua memória. Pah! Ah, deve ter doído tanto.

Andy só consegue pensar em Rose, deitado em sua cama aquecida pelos raios da manhã:
– Sai da minha cabeça, menina, eu quero trabalhar. – suspira.
Não adianta adiar, nem pensar que nada mudou ou mudará: o nome dela está presente em seu pensamento como jamais nenhum nome esteve. Seu sorriso de menina, suas frases decididas: um o antônimo do outro. Olha para o lado e imagina-a deitada ali, seus cabelos cacheados, brilhantes, espalhados pelo colchão, dominando o travesseiro, entrelaçados com os seus cachos. Uma leve lembrança do seu perfume surge no ar, junto ao medo da certeza de já estar apaixonado.

***

As semanas anteriores ao casamento do herdeiro do trono são terríveis, a maior correria possível para todos os membros da realeza, empregados do castelo, doceiras, cozinheiras, costureiras do reino todo e todos os súditos que pretendiam presenciar o evento nem que fosse da porta do templo. Parece que a loucura do rei chegou para arrastar a todos como uma ressaca depois do temporal.
O casamento será de dia e tudo estará arrumado no Templo de forma a valorizar a luz do sol. A cerimônia será unicamente pátrice, como é a noiva e sua família.
Todos os trajes encomendados em prazo tão curto obrigaram os nobres aldéus a chamarem costureiros de outros reinos para ajudarem na confecção. As sedas de Myhr tiveram os estoques esgotados.
Foram convidados diversos governantes de territórios vizinhos e estes marcaram presença certa no tão honroso acontecimento. Todos os filhos de Lucius III e suas famílias também virão – todos os que ainda falam com ele. A orquestra que animará o festejo será trazida de Daichwood, sendo convocada também para a marcha nupcial, canção que parecia trilhar os pesadelos de Andy e Rose, perturbados o mês inteiro e a todo instante devido ao acontecimento.

A Rose é dada a opção do vestido que quiser, o rei o pagará, não precisa nem pensar no preço. Mas o que lhe importa isso?
– Quero usar o vestido de noiva de minha mãe. – responde desinteressada, sem deixar margem para discussão, afagando a pacata Bianca sobre o braço da poltrona de seu quarto.
– Rose! – Marguerite protesta – O vestido de mamãe? Entendo que seja bonito, que gostava muito de nossa mãe, que sempre quis ser como ela, mas não vou deixar que o escolha se vai ser rainha, irmã! Se tem direito ao vestido mais pomposo e caro!
– Disse que entendia que eu gostava muito de mamãe e que sempre quis ser como ela.
– Sim, foi o que eu disse.
– Se entende mesmo, pense nisso quando eu entrar na igreja usando o vestido dela.
Rose levanta da poltrona do quarto e põe-se da porta para fora, dispensando as quatro costureiras que o rei lhe havia mandado, falando:
 – Nem se incomodem, senhoras, que o vestido já está feito.

            Quanto a Andy, era medido, enrolado em tecidos e alfinetado em seu quarto. Casará de cinza azulado, uma roupa bem clara, um primor da alta costura. Já sabem até seus sapatos, fator que Andy obviamente pretende ignorar.

***

Rose chorara a noite toda. Não suporta a ideia de ter sido vencida, de estar perdendo tantas aulas sendo produzida para agradar a alguém que mal conheceu. Ao final do dia perderia a virgindade com um homem que não ama, por quem não sente nada.
Sentada na cama, tendo sua felpuda gata a olhar para ela, Rose reclama chorosa:
– Ai, Bianca, é hoje!
Tapa o rosto com as mãos dando um discreto grito de agonia.
Alguém bate na porta chamando-a para começar os preparativos. Rose é tomada pelo silêncio e sua expressão é trevosa, exalando ódio de todas as pessoas do mundo. Todo mundo é culpado pela sua situação: todos pensam que juntando duas pessoas bonitas e inteligentes se produz a felicidade instantânea. Se esquecem que formar um casal não é como cruzar cães de raça: observa-se os aprumos, une-se os indivíduos, espera-se a cria sair perfeita. Não, a vida humana é diferente! Olhos verdes não são suficientes para se amar alguém, para se querer deitar com alguém esta noite! Será que ninguém vai perguntá-la o que ela quer?
A pessoa volta a bater na porta. Rose tem vontade de se matar. Olha sua formosa gata, tão indiferente: já dera tantas crias, de tantos gatos. Humanos são complicados demais. Rose já estava com dois namorados, que diferença faria mais um? Ela não o escolhera, essa é a diferença. Foi seu pai que nunca se preocupou com sua menina que escolheu e determinou e ordenou e obrigou… Ah! Quer matar-se!
Prostituição: é esse o nome do que fará essa noite! Vendendo seu corpo para ganhar um título! Por que não poderia ser seu pai a dar-se ao príncipe? Por que ela? Não tem nada a ver com isso!
Batem novamente em sua porta. Rose grita com toda a potência de sua voz.

***

Andy também não dormiu. Está apavorado. Qualquer noivo, por mais que ame e conheça sua futura esposa se apavora, quanto mais um que não conhece a mulher com quem passará o resto da vida.
Em meio ao seu medo, fantasias de como viria a ser essa cerimônia, a vida a dois, os filhos. É assim tão terrível se casar?
O que será feito de sua vida essa tarde? O que essa garota fará dele? Conseguiria fazer-se o homem da vida dela assim de repente? Fugiria, realmente fugiria… se não tivesse se apaixonado.
– Seu idiota. – sussurra para si mesmo deitado em sua cama.
Batidas soam na porta e seu título real é repetido do lado de fora na conhecida voz de uma empregada. Já é hora de acordar.
Andy pula da cama, exausto, porém com a mente fervilhando. O que fazer agora? O que fazer agora?! Olha-se no espelho, puxa os cabelos para cima:
Argh! Olhe para mim! – diz a si mesmo – Eu não passo de um moleque! O que eu vou fazer naquele altar??
É surpreendido pelo som da porta do quarto sendo aberta, a luz vindo mais intensa do corredor, alcançando seus pés descalços, marcando o vulto esguio de Ian Poler. Só mesmo ele para já estar acordado e vestido a essa hora.
Tendo ouvido seus resmungos, o Conselheiro lhe diz sorridente:
– Não exagere, Andy. Um moleque não precisaria se barbear, como tu bem que estás precisando.
– Barba é só um detalhe, um disfarce para um moleque. – esconde o rosto entre as mãos e chacoalha a raiz dos cabelos, caindo na cama novamente.
Poler senta a seu lado, acaricia sua cabeça com paciência. Levanta-o:
– Sei que sabes ser um homem. Um belo homem que é capaz de fazer muitas mulheres se apaixonarem. Não é de ser ainda um moleque que tens medo: tens medo de ser esse homem que te tornaste assim tão rápido.
Andy senta, fica olhando para o nada. Ouve essas palavras atentamente, tenta identificar-se com elas: talvez, talvez realmente tenha medo do homem que se tornou. Tenha medo por não ter notado isso antes, não ter tido tempo de se descobrir como um, não saber lidar com uma mulher da maneira que deve. Não se conhece apaixonado, sempre foi muito prático e até desatento com seus sentimentos. Sim, isso lhe dá medo.
Poler põe a mão em seu ombro:
– Gostas dela, não gostas?
– Eu não sei se eu sei quem ela é. – olha-o aflito – Eu mal tive tempo de conhecê-la.
– Ah, meu filho querido, o amor não é sempre assim. – sorri terno – A gente não consegue determinar e impor condições sobre quando e de que forma ele aparece na nossa vida. Ele simplesmente aparece. Nossa única intervenção é decidir se o assume ou o esconde de nós e dos demais. Eu sou teu amigo, sabes que não precisas esconder nada de mim. Se não quiseres de forma nenhuma casar-te com Rose, dizei “não” no altar e depois suportai as consequências. Agora, pensai bem, Andy, pois acho que teu coração não quer fazer isso. Eu te conheço, nunca te vi assim.
– É, eu nunca estive assim. Fui derrotado. Não sei lidar com sentimentos, não sei negá-los.
– Tu és puro. Nunca te envergonhes disso.
– De que adiantam meus sentimentos, Poler, se ela não quer nada comigo?
– Como podes estar tão certo disso? E, no mais, convivendo contigo não há frieza que dure. Eu sinceramente acho que não.
Andy dedica um sorriso triste ao seu professor. Abraça-o, num suspiro profundo. Poler bate de leve as mãos nas suas costas, como se consolasse uma criança que caíra do balanço. Andy se afasta novamente:
– Se acha isso, por que não se casou?
– Bem, Andy, eu… – explica desconsertado – Eu vivo para trabalhar desde que me conheço por gente. Tua amizade é a maior que eu já cultivei, mas amores, bem, eu nunca cultivei nenhum. Namorei na juventude, porém me perdi tentando ser alguém importante. Só que às vezes me lembro de que estou envelhecendo sozinho. – aperta seu ombro – Pelo menos ganhei um filho há uns cinco anos.
Andy o fita com carinho. Já se sente um pouco mais calmo. Quer sim casar com a moça, mas queria que tudo tivesse sido diferente. No mínimo queria ter pedido sua mão pessoalmente e ter visto um sorriso de satisfação em aceitá-lo. Mas não viu e isso o deixa tremendamente inseguro. Aliás, o único sorriso que anda vendo ultimamente está sendo o de Poler: como ele consegue ter sempre essa leveza, essa tranquilidade, mesmo com todo mundo enlouquecendo à sua volta? Agradece à Deusa por tê-lo ao seu lado.
– Obrigado, Ian. Obrigado por existir.

A empregada volta a bater na porta já aberta chamando para começar os preparativos. Poler também pensa em começar a se arrumar, afinal, é padrinho.

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