Na manhã
seguinte, na mesa do café, Andy conversa com seu Conselheiro preferido
visivelmente mais calmo. Há uma infinidade de alimentos disponíveis, entre
pães, queijos, castanhas, frutas e até mesmo flores que dividem espaço com
sucos, leite e diversos chás ainda fumegantes. Seus olhos sorriem discretamente
por trás do vapor que exala de sua xícara.
O rei chega até
eles acompanhado de pequena comitiva de empregados. Sentando-se à cadeira ao
seu lado, Lucius fita o neto com ar altivo e infla o peito para avisar:
–
Já negociei seu casamento, Andy. Será logo.
– E esse logo é
quando? – pergunta, dando mais um gole no chá.
– Esse logo é
mês que vem.
O rapaz engasga
arregalando os olhos, repetindo a cena do começo de tudo. Lucius ignora sua
tosse e fala num tom tão prepotente que soa esnobe demais até mesmo para ele:
– Por mim seria
amanhã mesmo, mas os preparativos exigem tempo. As costureiras logo irão
visitar sua noiva.
Andy ouve
balançando a cabeça, inconformado:
– Para que tanta
pressa, Lucius? Por que não pode deixar as coisas fluírem? Eu acabei de
conhecer a moça, agora vai pegá-la de susto com um bando de costureiras falando
“há um mês você era uma menina, agora é uma noiva e em mais um mês será uma
mulher casada”? Como acha que ela vai se sentir?
Não tem
resposta, então continua:
– Você não pode
mexer assim na vida das pessoas, Lucius! Se toda mudança precisa de tempo, uma
dessa importância precisa de muito mais!
O rei lhe encara
com gravidade:
– Quanto tempo
mais tem um velho como eu, Andy? Sim, eu estou com pressa para ver meus
bisnetos porque posso morrer a qualquer momento!
A discussão
deixa a mesa e todo o palácio em silêncio. Andy fita o avô, suplicante. Não
sabe mais o que dizer. Quer entendê-lo sim, ele é idoso: mas, por isso mesmo,
ele já viveu sua vida! E agora quer viver a dele também? Não é justo!
– Não, meu avô,
isso é mentira sua, pois bisnetos você tem aos montes por aí! Isso é
implicância comigo! Pura e simples!
Por que, meu avô? Por quê?
– Porque o rei
sou eu. – levanta-se, acha que com essa frase qualquer questão pode ser
encerrada.
Não para Andy,
que brada:
– Quantas vezes
eu preciso repetir até que entenda que isso te faz responsável pela organização
do reino e não meu dono?! Se está sem
nada para fazer, eu te deixo algum
trabalho no governo! – levanta-se também.
Talvez em alguma
futura aula o herdeiro deva aprender que mexer no ponto fraco de alguém nunca
vai colocá-lo numa situação mais confortável, bem pelo contrário. Tanto que a
face do rei parece incendiar depois de sua sentença. Lucius urra:
– Cale-se ou
volta para a masmorra!!
Um tenta superar
o outro em volume, enquanto o resto do reino tenta fazer cada vez mais
silêncio. Poler acha necessário interferir:
– Por favor,
Vossa Majestade, não posso permitir que tal coisa se repita. Sua Alteza é um
herdeiro e não um criminoso. Assim como não devia ter acontecido uma primeira
vez, um simples desentendimento não pode acarretar pena tão grave, ainda mais a
um membro da realeza.
– Já entendi,
Poler, não farei isso. – corrige-se o rei, sem paciência – Mas ainda quero Andy
calado.
– Não vou calar.
É minha vida! Minha vida é tudo que
eu tenho e pertence apenas a mi-…
Pah!!!
A bofetada
estoura quente contra seu rosto. Uma interjeição de susto toma conta do lugar.
O peito do jovem
se enche de fúria e de mágoa, como uma água morna e pesada pronta para
espalhar-se pelo corpo depois de tomar seu coração. Essa energia densa chega
até seu punho e tenta guiá-lo. Mas Andy resiste firmemente: não quer perder a
razão. Ele levanta seu rosto novamente, retoma sua postura e cospe sua frase
final:
– Quem perde o
dom do diálogo tende a comportar-se como o resto dos animais. – e deixa a mesa.
A tendência de
Poler é seguir Andy, mas dessa vez não sabe o que poderia fazer. Permanece
sentado, olhando para o rei, assustado com a própria atitude. Sim, está velho,
e cada dia mais louco. Porém, orgulhoso como sempre, não corrigiria seus erros.
Não desmarcaria o casamento, nem mesmo remarcaria.
Emanuelle, ainda
que de longe, observava a cena ajeitando o bastidor de seu bordado e deixa uma
pontinha de sorriso escapar. Ainda ouvindo o som do tapa em sua memória. Pah! Ah, deve ter doído tanto.
Andy só consegue
pensar em Rose, deitado em sua cama aquecida pelos raios da manhã:
– Sai da minha
cabeça, menina, eu quero trabalhar. –
suspira.
Não adianta
adiar, nem pensar que nada mudou ou mudará: o nome dela está presente em seu
pensamento como jamais nenhum nome esteve. Seu sorriso de menina, suas frases
decididas: um o antônimo do outro. Olha para o lado e imagina-a deitada ali,
seus cabelos cacheados, brilhantes, espalhados pelo colchão, dominando o
travesseiro, entrelaçados com os seus cachos. Uma leve lembrança do seu perfume
surge no ar, junto ao medo da certeza de já estar apaixonado.
***
As semanas
anteriores ao casamento do herdeiro do trono são terríveis, a maior correria
possível para todos os membros da realeza, empregados do castelo, doceiras,
cozinheiras, costureiras do reino todo e todos os súditos que pretendiam
presenciar o evento nem que fosse da porta do templo. Parece que a loucura do
rei chegou para arrastar a todos como uma ressaca depois do temporal.
O casamento será
de dia e tudo estará arrumado no Templo de forma a valorizar a luz do sol. A
cerimônia será unicamente pátrice,
como é a noiva e sua família.
Todos os trajes
encomendados em prazo tão curto obrigaram os nobres aldéus a chamarem
costureiros de outros reinos para ajudarem na confecção. As sedas de Myhr
tiveram os estoques esgotados.
Foram convidados
diversos governantes de territórios vizinhos e estes marcaram presença certa no
tão honroso acontecimento. Todos os filhos de Lucius III e suas famílias também
virão – todos os que ainda falam com ele. A orquestra que animará o festejo
será trazida de Daichwood, sendo convocada também para a marcha nupcial, canção
que parecia trilhar os pesadelos de Andy e Rose, perturbados o mês inteiro e a
todo instante devido ao acontecimento.
A Rose é dada a
opção do vestido que quiser, o rei o pagará, não precisa nem pensar no preço.
Mas o que lhe importa isso?
– Quero usar o
vestido de noiva de minha mãe. – responde desinteressada, sem deixar margem
para discussão, afagando a pacata Bianca sobre o braço da poltrona de seu
quarto.
– Rose! –
Marguerite protesta – O vestido de mamãe? Entendo que seja bonito, que gostava
muito de nossa mãe, que sempre quis ser como ela, mas não vou deixar que o
escolha se vai ser rainha, irmã! Se tem direito ao vestido mais pomposo e caro!
– Disse que
entendia que eu gostava muito de mamãe e que sempre quis ser como ela.
– Sim, foi o que
eu disse.
– Se entende
mesmo, pense nisso quando eu entrar na igreja usando o vestido dela.
Rose levanta da
poltrona do quarto e põe-se da porta para fora, dispensando as quatro
costureiras que o rei lhe havia mandado, falando:
– Nem se incomodem, senhoras, que o vestido já
está feito.
Quanto
a Andy, era medido, enrolado em tecidos e alfinetado em seu quarto. Casará de
cinza azulado, uma roupa bem clara, um primor da alta costura. Já sabem até
seus sapatos, fator que Andy obviamente pretende ignorar.
***
Rose chorara a
noite toda. Não suporta a ideia de ter sido vencida, de estar perdendo tantas
aulas sendo produzida para agradar a alguém que mal conheceu. Ao final do dia
perderia a virgindade com um homem que não ama, por quem não sente nada.
Sentada na cama,
tendo sua felpuda gata a olhar para ela, Rose reclama chorosa:
– Ai, Bianca, é
hoje!
Tapa o rosto com
as mãos dando um discreto grito de agonia.
Alguém bate na
porta chamando-a para começar os preparativos. Rose é tomada pelo silêncio e
sua expressão é trevosa, exalando ódio de todas as pessoas do mundo. Todo mundo
é culpado pela sua situação: todos pensam que juntando duas pessoas bonitas e
inteligentes se produz a felicidade instantânea. Se esquecem que formar um casal
não é como cruzar cães de raça: observa-se os aprumos, une-se os indivíduos,
espera-se a cria sair perfeita. Não,
a vida humana é diferente! Olhos verdes não são suficientes para se amar
alguém, para se querer deitar com alguém esta noite! Será que ninguém vai perguntá-la o que ela quer?
A pessoa volta a
bater na porta. Rose tem vontade de se matar. Olha sua formosa gata, tão
indiferente: já dera tantas crias, de tantos gatos. Humanos são complicados
demais. Rose já estava com dois namorados,
que diferença faria mais um? Ela não o escolhera, essa é a diferença. Foi seu
pai que nunca se preocupou com sua menina que escolheu e determinou e ordenou e
obrigou… Ah! Quer matar-se!
Prostituição: é
esse o nome do que fará essa noite! Vendendo seu corpo para ganhar um título!
Por que não poderia ser seu pai a dar-se
ao príncipe? Por que ela? Não tem nada a ver com isso!
Batem novamente
em sua porta. Rose grita com toda a potência de sua voz.
***
Andy também não
dormiu. Está apavorado. Qualquer noivo, por mais que ame e conheça sua futura
esposa se apavora, quanto mais um que não conhece a mulher com quem passará o
resto da vida.
Em meio ao seu
medo, fantasias de como viria a ser essa cerimônia, a vida a dois, os filhos. É
assim tão terrível se casar?
O que será feito
de sua vida essa tarde? O que essa garota fará dele? Conseguiria fazer-se o
homem da vida dela assim de repente? Fugiria, realmente fugiria… se não tivesse
se apaixonado.
– Seu idiota. –
sussurra para si mesmo deitado em sua cama.
Batidas soam na
porta e seu título real é repetido do lado de fora na conhecida voz de uma
empregada. Já é hora de acordar.
Andy pula da
cama, exausto, porém com a mente fervilhando. O que fazer agora? O que fazer
agora?! Olha-se no espelho, puxa os cabelos para cima:
– Argh! Olhe para mim! – diz a si mesmo –
Eu não passo de um moleque! O que eu vou fazer naquele altar??
É surpreendido
pelo som da porta do quarto sendo aberta, a luz vindo mais intensa do corredor,
alcançando seus pés descalços, marcando o vulto esguio de Ian Poler. Só mesmo ele
para já estar acordado e vestido a essa hora.
Tendo ouvido
seus resmungos, o Conselheiro lhe diz sorridente:
– Não exagere,
Andy. Um moleque não precisaria se barbear, como tu bem que estás precisando.
– Barba é só um
detalhe, um disfarce para um moleque. –
esconde o rosto entre as mãos e chacoalha a raiz dos cabelos, caindo na cama
novamente.
Poler senta a
seu lado, acaricia sua cabeça com paciência. Levanta-o:
– Sei que sabes
ser um homem. Um belo homem que é capaz de fazer muitas mulheres se
apaixonarem. Não é de ser ainda um moleque que tens medo: tens medo de ser esse
homem que te tornaste assim tão rápido.
Andy senta, fica
olhando para o nada. Ouve essas palavras atentamente, tenta identificar-se com
elas: talvez, talvez realmente tenha medo do homem que se tornou. Tenha medo
por não ter notado isso antes, não ter tido tempo de se descobrir como um, não
saber lidar com uma mulher da maneira que deve. Não se conhece apaixonado,
sempre foi muito prático e até desatento com seus sentimentos. Sim, isso lhe dá
medo.
Poler põe a mão
em seu ombro:
– Gostas dela,
não gostas?
– Eu não sei se
eu sei quem ela é. – olha-o aflito –
Eu mal tive tempo de conhecê-la.
– Ah, meu filho
querido, o amor não é sempre assim. – sorri terno – A gente não consegue
determinar e impor condições sobre quando e de que forma ele aparece na nossa
vida. Ele simplesmente aparece. Nossa única intervenção é decidir se o assume
ou o esconde de nós e dos demais. Eu sou teu amigo, sabes que não precisas
esconder nada de mim. Se não quiseres de forma nenhuma casar-te com Rose, dizei
“não” no altar e depois suportai as consequências. Agora, pensai bem, Andy,
pois acho que teu coração não quer fazer isso. Eu te conheço, nunca te vi
assim.
– É, eu nunca
estive assim. Fui derrotado. Não sei lidar com sentimentos, não sei negá-los.
– Tu és puro. Nunca
te envergonhes disso.
– De que
adiantam meus sentimentos, Poler, se ela não quer nada comigo?
– Como podes
estar tão certo disso? E, no mais, convivendo contigo não há frieza que dure.
Eu sinceramente acho que não.
Andy dedica um
sorriso triste ao seu professor. Abraça-o, num suspiro profundo. Poler bate de
leve as mãos nas suas costas, como se consolasse uma criança que caíra do
balanço. Andy se afasta novamente:
– Se acha isso,
por que não se casou?
– Bem, Andy, eu…
– explica desconsertado – Eu
vivo para trabalhar desde que me conheço por gente. Tua amizade é a maior que
eu já cultivei, mas amores, bem, eu nunca cultivei nenhum. Namorei na
juventude, porém me perdi tentando ser alguém importante. Só que às vezes me
lembro de que estou envelhecendo sozinho. – aperta seu ombro – Pelo menos ganhei um filho há uns cinco anos.
Andy o fita com
carinho. Já se sente um pouco mais calmo. Quer sim casar com a moça, mas queria
que tudo tivesse sido diferente. No mínimo queria ter pedido sua mão
pessoalmente e ter visto um sorriso de satisfação em aceitá-lo. Mas não viu e
isso o deixa tremendamente inseguro. Aliás, o único sorriso que anda vendo
ultimamente está sendo o de Poler: como ele consegue ter sempre essa leveza,
essa tranquilidade, mesmo com todo mundo enlouquecendo à sua volta? Agradece à
Deusa por tê-lo ao seu lado.
– Obrigado, Ian.
Obrigado por existir.
A empregada volta a
bater na porta já aberta chamando para começar os preparativos. Poler também
pensa em começar a se arrumar, afinal, é padrinho.
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