segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Capítulo 22 - "O Fichário"

 

Surge um novo alvorecer. Levemente nublado, é verdade, mas ainda assim tomando conta do céu vitoriosamente.
Lucius toma o café junto à esposa e, naquela manhã, este está particularmente demorado pelas interrupções sem fim à refeição. Isto devido aos planejamentos para o almoço especial de noivado.
Rodeado de empregados atentos, Lucius divaga sobre seu banquete, animadamente. Entre um gole no leite morno e uma mordida no pão fresco, ordena que anotem o repertório da orquestra que os receberia na entrada. Depois de uma garfada no queijo que ainda nem levou à boca, discorre sobre quantos tipos de sobremesa deveriam servir. Os vinhos do aperitivo, a sequência de pratos, as carnes, os chás para a conversa na sala... tudo antes que termine a taça de suco.
Ah, isso é o que mais apraz Lucius III em sua vida de rei! Festas, celebrações, banquetes! Seria o casamento arranjado apenas saudade de uma boa festa de bodas? Que Andy nem desconfiasse disso.
Talvez, até o próprio rei negasse se lhe fosse perguntado, como que insultado, colérico. Só se sabe que o leite esfria tanto em sua xícara durante seu planejamento emocionado que chega a gelar.

 Andy já tinha acordado há um tempo, pois não conseguia dormir muito, ainda mais negativamente ansioso como está. Tinha dormido mais cedo, por isso levantou elétrico antes do sol aparecer e correu alguns quilômetros ao redor do bosque do Palácio, absorvendo do orvalho e do canto dos pássaros toda serenidade possível. Precisava descarregar a ansiedade.
Entra, passa pela família como se nem a visse e sobe as escadas depressa. Toma um banho rápido e vai até a biblioteca, onde Poler, Campbell e Deris o aguardam:
– Bom dia, senhores. E bom dia, Uli, como vão as namoradas? – dedica-lhe um sorriso falso.
Uli não responde. Odeia essas indiretas. O príncipe senta junto à mesa de estudos onde os três estão apoiados e Poler coloca em sua frente um grande livro aberto:
– Deris encontrou.
– Oh, é o que eu pedi?
– Sua árvore genealógica. – responde Deris – Lembra-se que eu falei que sabia onde estava? Aí está.
– Obrigado, Willian! Eu realmente precisava disso! Mas é um livro tão grande.
– Ora, Alteza – comenta Campbell – Essa família tem quase dois mil anos. Não me impressiona o tamanho desse livro, que, aliás, é um fichário.
– Grande fichário. Eu já estou aqui? – começa a folhar.
– Bem lembrado, Andy. – responde Poler – Mandaremos o escriba atualizar isso. Lembra-te dos nomes de todos os seus irmãos e irmãs?
Isso faz Andy rir:
– Claro que sim! São apenas dez! Faz parecer que são quarenta. Mas me deixe dar uma olhada nisso antes, certo?
– Como quiser, Vossa Alteza. – concorda Deris.
– Estaremos na Sala de Conselho se precisares de nós. – informa Poler.
Andy se vê sozinho e começa sua pesquisa. Vai até a última folha, onde o último nome que consta é o de Lucius III. Não está incluído nenhum de seus dezenove filhos, apenas sua esposa e atual rainha, Emanuelle.
Tem espaço para o seu nome, mas para os dos seus herdeiros não, pois serão escritos em uma nova folha, depois incluída. Os ali relacionados são os reis, suas esposas e todos os seus filhos, porém, os únicos netos que estão listados são os filhos do sétimo filho. E mesmo assim já eram nomes infinitos.
Meu pai me conta como geração anterior, obviamente,” pensa Andy “mas acho que o que eu procuro é apenas a relação dos que foram coroados. Lucius III, para cima é Lucius II, Leerian, nossa única rainha, Louis, August, Roger… aqui está: Richmond. Sete coroas acima de mim, então é este o homem: Richmond Mideline.”, conclui, Andy.
Já era familiarizado com o nome de quase todos os reis da dinastia. Quem era avô de quem é o que sempre lhe escapava.
Corre os dedos pelas páginas do grande fichário. A vida e as boas e más ações de cada rei estão ali relatadas, antes da parte da árvore genealógica, como pequenas biografias, como seus legados à posteridade. As páginas são costuradas de forma que novas folhas possam ser incluídas a qualquer momento, tanto no final quanto no meio do imenso volume.
A vida de Richmond Mideline, como aparece na marcação logo ao lado do seu nome, estava contada na página 2037. “Não me imagino lendo isso tudo”, pensa Andy, assim que finalmente encontra a lauda correta.
Ele se debruça na mesa e se põe a ler: “Richmond Mideline nasceu em Shelter, capital do Reino de Elderwood, no Quarto dia da Crescente de Tetráster, no ano de 4203 do Calendário das 13 Luas…”.

***

Rose é arrumada pelas empregadas. Elas penteiam suas longas mechas, ajeitam os cachos delicadamente em suas pontas e também trançam algumas. O vestido escolhido é um de tom acobreado, de mangas de fino tule transparente dourado com alguns bordados cobrindo o colo e os braços. Ela se olha, apática, no grande espelho dentro de seu quarto.
Christopher anda em círculos na sala, exultante. Vai almoçar na mesma mesa que o rei e logo faria parte da família Real, como sogro do herdeiro do trono. Não se contém de emoção. Sente-se tão importante! Sua mente já constrói cenas de intimidade dentro do Palácio que não visitava há tantos anos. Ah, suas conversas na Alta Sociedade Aldéa serão outras… Quem mais ali poderia se gabar de fazer parte da Família Real? Não seria como Valfrida Lorjiss, cujo filho é casado com uma das oito filhas de Lucius III, não: sua Rose será, de fato, a rainha um dia. Rainha! Os Harmand subirão a um pedestal inalcançável, certamente será alçado a Duque! Arquiduque! Que dia emocionante! E graças justamente à sua caçula, que sempre lhe rendeu tantas preocupações.
 A garota desce pronta pela escadaria, com os olhos frios, mesmo assim maravilhosa. O homem até acorda de seu sonho de grandeza, espantado, os olhos bem abertos e brilhantes: nunca vira a filha tão bela como está vendo agora. Talvez a mulher mais linda que já teve a chance de avistar. Sua menina, sua flor. E ele estará, hoje, oferecendo-a a um completo desconhecido, que poderia fazê-la sofrer. Bate-lhe um estranho e ligeiro remorso. Efêmero, porém.
Ele ordena à filha que vá à carruagem imediatamente. E assim ela faz, sem uma palavra. Saul observa-a, aflito, junto ao portão de entrada.
Rose senta na carruagem, tão parecida com a que trouxe Andy de sua aldeia para o mesmo destino, com raiva nos olhos: horas se arrumando para o deleite de um completo estranho. Devia ser fresco, egoísta, ensimesmado, burro, chato, até mesmo pervertido! E ela estava sendo entregue de bandeja para ele.

***

Uli Campbell entra devagar na biblioteca. Andy demora a notar, mas quando nota, reclama:
– O que você quer?
– Vossa futura noiva deve chegar a qualquer momento, Alteza. Sua Majestade ordenou-me avisar para arrumar-vos. Perdoai-me.
– A qualquer momento? – preocupa-se.
Ele confirma, acenando com a cabeça. Andy deixa um marcador na página que lia e sai da biblioteca, rapidamente. Empregadas o aguardam logo na porta. Cada uma segura uma peça de roupa e é nítida a intenção de o vestirem. Andy contrai a expressão, encabulado:
– Senhoras, bem, eu… sei me vestir sozinho. Agradeço.
Enquanto fala, vai colhendo das mãos delas suas roupas como se fossem frutas, juntando-as no braço. Escapa rapidamente deixando apenas a empregada que segurava suas botas ali, parada, com elas ainda em suas mãos.
Não sabe por quem a combinação de roupas tinha sido escolhida, mas era muito bonita. Veste a calça preta e justa, a camisa branca de algodão de mangas longas com babados, amarra o lenço branco no pescoço, arrematado por um broche com o símbolo do dragão em prata sobre pedra azul-noturno. O cabelo é trançado por cima, por baixo solto, e um paletó preto de mangas largas, todo bordado com fios de prata, completa a vestimenta. Estava estonteante, mas, como sempre, descalço.

3 comentários:

Íris disse...

Que final sem vergonha! hhahaha

Unknown disse...

Má , muito bom mesmo está parte dois. Rose começa a despertar algum sentimento em Andy, que emoções serão estas? Estou muito curiosa mesmo para ver a próxima poetagem. Please please mais e mais urgente. Grata . Bjs

Marcio R. Gotland disse...

Esse Andy...