segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Capítulo 21 - "É Só Uma Mulher"


O príncipe acorda na própria cama, preguiçoso. Olha a parede do quarto, a luz que entra mansa pelas cortinas e reflete luminosas cores pelos móveis de madeira. Pensa um pouco, e logo pula da cama, assustado:
            – Ada?!
            – Shh! – pede Poler, sentado numa poltrona do outro lado da grande cama – Queres acordar a todos com esse nome? Mal amanheceu, pequeno. Fui eu quem te trouxe aqui, não te preocupa.
            Andy sussurra com os olhos bem abertos:
            – Quer me matar de susto? Primeiro eu acordo num lugar em que não dormi e agora sai falando sem eu saber da sua presença! Pela Deusa… – suspira aliviado.
            – Desculpe-me.
            – Desculpar? – Andy ri – Só pode estar brincando! Eu só tenho o que te agradecer! Por tudo. Por me salvar, por me trazer, por ter se atrasado no congresso por mim… – enumera, agradecido – Ah! Então? Como foi? Chegou a tempo?
            – O Congresso? Bem, eu cheguei a tempo sim. Com “a tempo” queres dizer antes de acabar, não? – brinca, meio seriamente – Mas foi aquela coisa de sempre, tu sabes. Pelo menos fui apresentado para os mais novos Oficiais do reino. Eles me pareceram promissores. Tenho certeza que concordarás comigo mais tarde.
            – Também tenho certeza, mas eu quero saber de uma coisa, Poler: o que aconteceu exatamente ontem?
            – Ontem? Ontem à noite?
            – Claro. Desde que tudo apagou até a hora que tudo acendeu.
O Conselheiro puxa o ar:
            – Bem, ontem, Andy, eu andei cerca de dois quilômetros, boa parte entre subidas e decidas de escadas e boa parte deles contigo nos braços. Mandei um homem jogar dois pela janela da torre e enganei mais de sessenta pessoas com uma única pergunta. Basicamente isso.
            Andy o olha espantado, uma careta de incredulidade fixa no rosto. Não deu para entender muita coisa, mas algo ficou nítido:
            – Te dei trabalho, não dei?
            Poler sorri, se levanta e vai saindo. Antes de fechar a porta, comenta:
            – Ainda temos muito o que conversar. Mas deixemos isso para depois do café. Arruma-te e desça.
            Andy, sentado na cama, dá um suspiro longo, amassa o rosto com as mãos e as larga ao redor de si. O que aconteceu ontem foi que passou dos limites. Colocou a esgrima em prática da pior maneira possível e pior que isso: não será responsabilizado por nada. Há pouco mais de cinco anos seria condenado a perder a cabeça, ou fazer trabalhos forçados pelo resto de sua vida por ter feito o que fez.
Por ter desafiado o rei com simples palavras foi torturado, mas por matar dois soldados nada sofrerá, pois é “superior” a eles. Superior a eles, por nascimento, isso não é um absurdo?
Um pesado remorso lhe toma, mas o que seriam mais dois soldados entre tantos que morreram na frente de batalha por ideia sua? Se começar a pensar nisso a fundo, pelos deuses, acabará entrando em parafuso.
Nota algo em seu criado-mudo e se debruça para alcançar.
Percebe ser uma carta enrolada. Vai até a porta da sacada e abre as cortinas para ter mais luz. Desenrola o papel. Segue para fora sentindo a brisa gostosa da manhã, encosta-se ao parapeito e começa a ler:

            “Para Vossa Majestade, de Christopher Harmand.
Eu e minha filha Rose estamos muitíssimo honrados com o inesperado convite para fazer parte de Vossa maravilhosa família. Esperamos uma visita na data que preferir, será um imensurável prazer.
Acreditamos num excelente resultado para este feliz casamento.
Cumprimentos ao futuro noivo.”

Se há uma coisa que o inútil de seu avô sabe fazer direito é provocar. Andy enrola a carta novamente, inspira o ar devagar, tentando se controlar.
Está furioso. Tem vontade de mandar esse tal conde e sua filhinha para o inferno!
Olha para o papel com os olhos transbordando de raiva:
– Maldição! – amassa-o e joga-o para longe, para lá do chafariz do centro do jardim.
Mira o horizonte, tão distante. Não consegue mais sentir liberdade no vento que bate em seu rosto. Comprime os lábios. Entra e se arruma para descer.

Chega à sala de jantar, beija a mão da rainha e pergunta:
– Onde está seu esposo, minha avó?
            – Não o enfrente mais, Andy. Ele só quer seu bem.
            – Não entendeu, senhora. – fala secamente, sentando-se à mesa, sondando as opções do café – Apenas quero saber onde Lucius está. Não quero discutir nossa situação: não agora, nem com a senhora.
            Ela hesita na resposta:
            – Ele foi conhecer sua noiva pessoalmente.
            Andy olha para os olhos da avó. Franze as sobrancelhas e chama uma empregada:
– Chame Poler aqui, por favor. – e volta a atenção para o café, aparentemente.

***

Os mais soberbos cavalos esperavam o rei na entrada da nobre mansão do Conde Harmand, cuja opulência do jardim frontal a fazia parecer uma miniatura do Palácio, com direito a um chafariz monumental e ruidoso a espalhar umidade por todo espaço.
A variedade de flores era de se admirar, mas talvez as mais belas fossem as que cresceram dentro da mansão: Rose, Marguerite, Violete e Amarilis, as filhas do Conde. Apenas as duas mais jovens ainda residem lá.
Marguerite já estava comprometida a outro nobre, Samuel Artaniss, único filho varão do Conde Emannuel Artaniss, e se unirão em casamento no décimo terceiro mês deste ano.
O rei desce da carruagem, devagar, pomposo, exibindo até uma bela capa de couro azul com bordas de pele felpuda, sendo ladeado por dois soldados em trajes de escolta. Christopher Harmand primeiro o reverencia, mas depois aperta sua mão, como se já fossem bons amigos. Apoiando as costas do rei, o conduz até suas filhas Marguerite e Rose que o esperavam ao lado da porta de entrada.
Marguerite possui longos cabelos quase loiros, presos para cima em infinitas tranças que haviam ocupado horas das empregadas. Os olhos cor de ouro brilham de alegria acima de suas faces rosadas, jubilosa por receber o rei. Joias cintilam sobre o recheado decote do traje elegante, púrpura, repleto de bordados. Cumprimenta-o numa longa e interessante reverência, com um sorriso que mal cabe em seu rosto. O rei aprecia muito sua hospitalidade.
Ao seu lado, desanimada, está a causa de sua visita: Rose, a pretendente.
O rei examina bem a moça e se encanta por sua beleza. A caçula de Harmand tem um lindo par de olhos castanhos, quase mel, grandes e expressivos; boca pequena, mas com lábios grossos e delineados delicadamente pela natureza; nariz afilado, pequeno e levemente empinado; um porte um tanto miúdo, suave, mas que lhe cai muito bem; cabelos ondulados, o comprimento ultrapassando o quadril, com cachos nas pontas, castanhos dourados. Ela está usando um vestido rosado, longo, com mangas compridas de tecido transparente, decote reto, imperial, e com uma sobressaia partindo desde quando acaba o busto.
Ela mal consegue sorrir ao vê-lo, mesmo assim, lhe passa uma imagem doce, como se fosse tímida. E meninas jovens e tímidas são tão atraentes…
Rose reverencia sutilmente o soberano e o convida a entrar.
Os dois homens adentram a mansão em conversa efusiva, sentam-se na sala de visitas, com alguns funcionários ao redor, inclusive Lorence. Os soldados do rei, porém, permanecem na porta. Uma empregada traz uma bandeja e serve o convidado do melhor vinho tinto da região. Só com o preço da garrafa poderia ser comprado um cavalo.
Marguerite dá um cutucão animado na irmã caçula invejando sua sorte, e vai também para a sala, com ouvidos alertas e sorrisos pródigos. Já Rose é discreta como uma gata. Entra, caminha devagar pela sala, as pontinhas dos dedos acariciando o encosto de um dos sofás enquanto passa por trás dele, e escapa pelo outro lado, não sem antes trocar olhares insuspeitos com o namorado.
Os nobres discorrem sobre as possibilidades do casal:
– Acha mesmo que tua filha aguentará a barra: serão sete filhos no mínimo!
– Tenho certeza que serão as sete crianças mais fortes e bonitas que Vossa Majestade jamais vira antes! Confie na menina! Só espero que vosso neto saiba dar conta do recado também.
– Ora, Harmand! Meu neto é forte como um touro! E aposto que sua filha logo estará concordando comigo!
Lorence dá um suspiro enciumado desviando o olhar, mas logo estica uma taça para ser servido pela funcionária que passava por ali. Marguerite procura a irmã com os olhos e segreda com o contador:
– E a maior interessada não está aqui.
Lorence quase ri com a frase que a “cunhada” escolheu. “Maior interessada”… se ela soubesse. Dá um gole que saboreia longamente. Nunca seu patrão lhe ofereceria um vinho desses. Bem que reis poderiam visitar essa mansão com mais frequência, não?
Rose espia de longe, pela janela da cozinha, a conversa que corre em alto volume – inclusive de egos – na sala. Ao seu lado, o jovem e franzino tratador de cavalos, Saul, pergunta baixinho, aflito:
– O que eles estão falando agora?
– O que você acha? – responde bufando.
Sai do esconderijo e da casa, Saul a segue pelo quintal, enquanto a moça exclama:
– Estão decidindo a minha vida no meu lugar, lógico! Falando de mim como se eu fosse uma cadela de raça prontinha para procriar! E logicamente enchendo o mimado do príncipe de elogios!
Saul é acostumado a ouvir seus desabafos. Desde que eram crianças é assim: é sempre para ele que Rose pode confessar o que sente. Sempre com ele que divide as melhores gargalhadas e as mais sentidas lágrimas. Mas, se os planos do Conde dessem certo, não seria mais. Nunca mais. Comprime o cenho, angustiado:
– Não suporto a ideia de ter que me separar de você.
– E quem disse que a gente vai se separar?
– Mas, Rose, não é certo. E também, você vai morar no palácio e eu vou ficar aqui, não lembra?
– Ah! Eu dou um jeito!
Olha-o com seu jeito sapeca e acaricia seu queixo. Está tão linda e bem arrumada, é quase inacreditável que escolhesse lhe dar atenção no dia de hoje. Ou sempre, como sempre dá. Mas hoje é pior: tem um rei na sala!
Saul conclui que o que ela disse é conversa do momento e que logo se esquecerá dele, pessimista como ele só. Rose, pelo contrário, pensa em algum jeito de levá-lo consigo, aonde for: não vive sem esse garoto.
Diferente de Lorence, Saul e Rose cultivam um amor infantil, cúmplice, como uma amizade colorida. Relação também escondida de seu pai, pela diferença de classes entre os dois. Até o contador aparecer, Rose se casaria com Saul se Christopher morresse, ou então fugiriam numa ocasião como essa, quando o pai lhe arranjasse um casamento forçado.
Imagina como seria se ela ainda pensasse assim. Saul lamenta muito por Lorence ter aparecido.

***

Andy despedaça um pão, com o olhar fixo no nada, nervoso. Poler, atrás dele, se apresenta:
– Ian Poler ao vosso dispor, Alteza. Mandastes me chamarem?
A rainha ergue uma das sobrancelhas, incomodada. Percebe que sobraria naquela mesa então se retira silenciosamente, sendo seguida por duas criadas. Poler senta em seu lugar e sai da formalidade:
– Deixe-me trabalhar, Andy. Pelo amor do Pai!
Andy não quer saber de brincar. Continua a destruir o pobre pão e fala sério, sem olhar para ele:
– Sabe aonde foi o meu avô?
– Não, não sei.
– Ele foi conhecer minha noiva!
Ah, esse assunto. Pelo jeito o rei vai levar isso até as últimas consequências. Melhor fazer seu papel de conciliador:
– Ele tem todo direito, Alteza.
Tem? – rosna.
– Sim, ele tem. – Poler franze o cenho, sendo franco com o aluno – Discordo total e sumariamente da atitude dele por ter te castigado, mas não acho assim tão absurda a ideia do casamento.
– Eu não me conformo! – esbraveja enquanto se levanta rápido, amassando o lençol da mesa com as grandes mãos e fazendo todos os pratos andarem ruidosamente – Seria tão bom se fosse tudo um susto! Que nada estivesse acontecendo!
– Acalma-te, Andy. O que pode estar tão errado? É apenas uma mulher! Acho que isso até demorou a acontecer, não sabes que todos os monarcas se casam dessa forma? Poderá até ser bom para ti.
– Acontece que você não teve que ser espancado simplesmente porque quis conduzir sua própria vida! – seu tom não é mais nervoso, está perdido, solta o lençol –Meu avô me deixa conduzir um reino! Um reino!! E não me deixa cuidar de mim mesmo? É isso que eu não entendo.
– Pobre de ti, garoto. Mas não é o momento de entender, apenas de confiar. Tudo dará certo, com a graça da Deusa que tu tanto amas. Confia.
– Confiar? – repete decepcionado.
Poler sorri. Ele se levanta, dá tapinhas nas costas de Andy e sai. O príncipe fica sem palavras.
Quem iria entendê-lo, afinal? Quem daria razão para sua intuição, para seu sentimento de sufocamento em relação ao fato? “É só uma mulher”, ele diz, parece simples, não é? Sim, parece muito simples.
Como parecia simples sair de uma aldeia pobre e se tornar um príncipe, algo que devorou sua alma por tantos anos. Mas quem se importa? Ele é um bom garoto e vai acabar entendendo, como sempre, não é? Andy era só um aldeãozinho estropiado, só está aqui pela benevolência de Lucius III. Como ainda ousa se achar dono da própria vida?
Uma empregada idosa chega com um saco de pano recheado de ervas perfumadas, junto a uma maleta de madeira onde se carrega vidros de óleos e essências, e fala, de mansinho:
– Está tudo bem? Podemos ir agora?
– Vai me arrumar? – estranha Andy, bem mais calmo.
– Foi o que me disseram.
Andy volta a olhar o chão, perdido, os ombros pesados, o coração apertado. Com um leve movimento da cabeça consente em seguir com ela.
Lucius colocou pelo menos cinco funcionárias na função de transformar o dia do príncipe num verdadeiro spa, cercando-o de cuidados e mimos, sem deixar que se preocupasse, ou, como Andy entendeu rápido, sem deixar que saísse do quarto.
Não queria cruzar com ele, não queria correr o risco de mais farpas serem trocadas. Andy, sendo mimado, talvez concluísse que a vida da realeza tem vantagens e desvantagens e que, desde que Lucius pudesse estar por cima, tudo ficaria bem.
Que não insistisse mais em ser livre e que, por favor, não fugisse, como Jason fez.
Enquanto recebe massagens pensa nisso. Pensa se a fuga de seu pai teve algo a ver com surras e injustiças, se teve a ver com a dor de ser calado a qualquer custo. Não sabe. É tão estranho para Andy imaginar seu pai dentro dessas paredes, vestido de sedas e joias. Parece inconcebível até. E, talvez o mais estranho nisso tudo seja o fato de que, mesmo com toda a revolta contra seu avô, com toda saudade de Ecklacia e da sua família que vive ardendo dentro de si, Andy não pensou em nenhum momento em fugir.

Um comentário:

Unknown disse...

Má muito interessante este início , pois o reinado de Andy não é tão simples como ele pensa e quer. Mas quem sabe quando ele conhecer a bela Rose. Parece- me que Rose e Andy são ambos muito obstinados e caprichosos em suas decisões; será que o grande encontro vai dar certo? Será? As emoções florescem a cada capítulo.....