É quinta-feira. A noite já caiu. O príncipe adentra o quarto depois de um
longo dia de trabalho, carregando uma imensa e pesada chaleira de prata com
água quente até a borda. Na outra mão traz um castiçal com cinco velas acesas.
Entra no banheiro empurrando a porta com o corpo e despeja o líquido fervente
na tina de madeira fazendo o vapor subir e os pavios das velas fraquejarem pela
umidade.
Deixa o castiçal sobre o tampo da pia e leva a vasilha ainda quente,
agora vazia, para junto da preciosa e única torneira. Das engenhosas tubulações
do Palácio de Pedra, Andy libera mais água. Joga-a na tina, esfriando um pouco
a que lá estava e começa a tirar, enfim, a roupa elegante do dia de trabalho.
Desata o nó do pescoço, abre todas as abotoaduras, deixa tudo sobre uma cadeira
que talvez não devesse estar ali.
Apanha a caneca de bambu que flutuava na água morna, molha os pés antes
de entrar, como sempre faz, para que não sujem a água do banho. Entra com
cuidado e senta devagar.
Não é bem assim que as pessoas se lavam em Elderwood.
Os aldéus permanecem de pé na tina, que tem a largura de um tonel de
vinho e a altura dos joelhos de um adulto – nunca
cheia até a borda – e se abaixam para pegar a água com a caneca e lançarem
cuidadosamente sobre o corpo, enquanto esfregam uma bucha vegetal sobre o suor
de suas peles claras. Ao final, vira-se a tina sobre o único ralo do banheiro,
no canto, e pode-se ouvir a água descendo as tubulações ruidosamente até o som
se esvair.
Andy não gosta muito do banho aldéu, inventou seu próprio método. Senta
na tina e coloca as longas pernas para fora. Só as recolhe na hora de lavar os
pés, última parte do corpo contemplada.
Ao final, seca os cabelos e coloca uma roupa bem simples arrematada por
uma capa parda com capuz. Esquece os
sapatos.
Abre o baú aos pés da cama, desenrosca os dedos do véu do dossel e pega
um violino.
Escancara as portas da grande sacada e suspira sorridente olhando a noite
lá fora. Sim, a essa hora todos já estão se recolhendo. Cobre a cabeça com o
capuz e, animado, pula o parapeito pela lateral esquerda.
Escapa caminhando pelo telhado e depois pelos muros, sorrateiro. Ruma à
cidade, para chegar ao extenso bosque que a ladeia. A lua ilumina o caminho com
sua luz intensa, inibindo os lampiões a óleo que se espalham pelas calçadas.
É nesse dia da semana que, há dois anos, Andy se reúne com suas mestras
dentro da mata, exceto quando chove, ou quando algo o impede de fugir. É o dia
de seu Culto.
A
religião em Elderwood é complexa e ao mesmo tempo muito livre. Não há nenhuma
espécie de perseguição entre crenças distintas, embora exista uma
"oficial" - que só é chamada assim por abranger quase a totalidade da
população.
Aldéus
acreditam na existência de um Deus Supremo, Criador do Universo, e, graças aos
conhecimentos da era dos Homens Elétricos,
têm plena noção do seu tamanho. Sabem a quantidade de estrelas e planetas
mapeados, sabem das galáxias e de suas dimensões inimagináveis. Enfim, a obra
Dele é infinita, mas, segundo sua crença, esse Deus Criador não é tão onipresente e onisciente assim. Ele precisa de ajuda para administrar todos os
infinitos planetas habitados pelo cosmos.
Ao
distribuir sua matéria cósmica pelo espaço,
criou também o Espírito, e, para cada
planeta habitado, outorgou poder a uma divindade para cuidar de cada um: a
Deusa da Matéria e o Deus do Espírito. Esses casais dirigem a vida e a morte de
todos os seres sob sua guarda, em cada um dos planetas.
A Deusa da Vida Material
recebe muitos nomes. Na Terra é chamada por Deusa Mãe, Mãe Terra, Grande Mãe,
Gaya, Cerridween e tantos outros, e é a força viva que rege a Natureza e todas
as Leis Naturais. Desde as leis físicas como a gravidade até os instintos animais,
que incluem o Homem, como o da sobrevivência e da reprodução.
O seu par no
casal divino, o Deus do Espírito, é chamado também de várias formas: Deus da
Morte, Deus Pai, Deus das Almas e Deus do Destino. Seu trabalho é exclusivo à
Humanidade. Os humanos são seu assunto. Ele trata da consciência - da culpa e
da virtude – que não cabe aos animais. Os animais são regidos pela Mãe, mas a mente dos homens segue as Leis do Pai.
Estar em paz é encontrar o equilíbrio entre os dois: o corpo e a mente, o Deus
Pai e a Deusa Mãe.
Há em Elderwood,
assim como em vários outros reinos sobre Elion, quem tenha desfeito o Casal
Divino. Há quem siga somente o Pai e ignore seu lado animal, construindo
imensos e excelsos templos para adorarem sua divindade. São chamados de pátrices.
Possuem
Sacerdotes, cultos próprios em horários marcados, mas deixam o templo aberto
para receber orações de quem quiser entrar.
Os adoradores
apenas da Mãe acabaram sendo chamado de pagãos,
muito embora não sigam o paganismo ancestral à risca, tendo mudado
muitos rituais e conceitos. O templo deles é a natureza, os cultos são
marcados pelos ciclos da rotação da Terra ao redor do Sol, os movimentos
estelares, as fases da Lua. A intenção é estar em pleno equilíbrio com o
planeta natal, o rico ventre da Grande Mãe.
Foi essa a opção
de Andy.
Bem que tentaram guiar o príncipe nos caminhos da doutrina do Casal,
fazê-lo frequentar também o Templo do Deus das Almas. Andy ficou curioso em um
primeiro momento, aprendeu seus fundamentos quando chegou, como aprendeu todas
as outras coisas que sua função exige que saiba, mas não gosta de cultuá-Lo.
Não como à Deusa.
O Deus das Almas é buscado no Alto, mas encontrado dentro de si, por isso
seus cultos são silenciosos. Silenciosos demais
para quem veio de Ecklacia… Seus fiéis unem suas mãos e fecham seus olhos,
enquanto um Sacerdote repete palavras ditas há milênios, solenemente, e aguarda
que elas sejam absorvidas pelos corações. Fala de amor e de perdão, fala de
culpa. São lições morais.
A Deusa da Vida é cultuada com festa, barulho, mais ao gosto dos simples.
O Deus Pai trata de consciência sobre seus atos e pensamentos e também
sobre o destino das almas – por isso chamado de Deus dos Mortos. Trata do bem e
do mal, da virtude e do arrependimento. Algo além do instinto, além da
sobrevivência orgânica. Esse Deus assusta Andy um pouco, mas o Sacerdote
Mathya, respeitável ancião responsável pelo Templo da Capital, já lhe disse
várias vezes:
– Os bons meninos não devem temer o Pai.
Andy sempre foi considerado um bom menino. Mas a Lei da Consciência e do
Destino das Almas, às vezes contraria a Lei da Sobrevivência da Deusa. É
difícil ser um rei e fazer seu povo sobreviver sem bater de frente com as Leis
da Consciência. Se Andy fosse fiel ao Pai, conseguiria opinar sobre guerras?
As cinco bruxas estão reunidas com cerca de outras dez pessoas, jovens,
em sua maioria. As roupas de todos ali são simples, tão simples quanto a que
Andy está vestindo, e quase todos estão cobertos com a capa.
Apesar da inocência do encontro semanal, a maior parte participa sem
avisar a família e sai na calada da noite, assim como o príncipe, aumentando a
sensação de aventura que os traz até ali.
O segredo da prática é não uma regra, mas uma espécie de filosofia: um
bom bruxo não deve alardear sua condição, deve sempre se esconder por trás da
causa que defende, saber que tudo que lhe é concedido pela Mãe Terra pode ser
tirado caso perca seu merecimento. Isso acontece com aquele que se acha capaz
de subjugar os Elementos à sua
vontade, usando-os apenas para massagear seu ego. Quando o sentido do “sagrado”
foge dos rituais, a Deusa Mãe se desagrada e poda o bruxo, como se poda um
galho apodrecido em prol da saúde da árvore.
As cinco bruxas, Marieva, Perséfone, Silvia, Thabata e Yeda, tanto ensinam
a trabalhar os Elementos, quanto a obedecer à conduta do bom bruxo.
– Magia é consagração, não diversão. – alerta sempre Marieva.
Mas consagrar é muito divertido, de fato.
Normalmente abre-se uma página do livro e se pratica, ou alguém traz uma
experiência e divide o que viveu e sentiu com o grupo. De experiências
transcendentais a problemas pessoais, tudo ali é ouvido com atenção.
Da metade para o fim, o ritual transforma-se em dança em torno do fogo,
toca-se instrumentos musicais e todos cantam as canções devocionais ali
ensinadas. Quando era mais novo Andy cantava com uma voz bela e suave, mas
desde os quatorze anos ela começou a mudar, desafinou, como é normal da idade.
Aprendeu violino, enquanto a puberdade não ajuda, e, para que não desafine com ele
também, está tendo aula três vezes por semana.
Na última reunião, depois de tanto tempo, Andy finalmente venceu sua
timidez e contou ao grupo o que aconteceu naquele fim de tarde com o furacão em
sua terra natal. O fato surpreendeu a todos e, por isso, para hoje tinha sido
prometida uma surpresa por parte de suas mestras.
Andy chega ansioso e entra na roda iluminada no meio da mata. Todos se
voltam para ele fazendo-o abrir mais os olhos e o sorriso, curioso. É quando
percebe alguém diferente na reunião.
A visão deixa Andy hipnotizado: é uma senhorinha muito pequena – seu
tamanho não é maior que o de uma criança de cinco anos. Quase não tem pelos no
corpo, sua pele é enrugada e manchada. Desdentada, de olhos grandes, castanhos
e serenos, ela o aguarda. Usando um vestido muito simples e uma pequenina capa
com capuz, ela fixa em seus olhos. Aquele olhar parece uma flechada no fundo da
sua alma, toca o poço mais profundo de sua emoção.
O adolescente não consegue se mover. Tem lágrimas a escorrerem devagar pelo
rosto: quem é essa mulher?
A bruxa Marieva aproxima-se de Andy, toca seu ombro e, entendendo sua
emoção, a qual ele mesmo não entende, lhe apresenta:
– Andy, essa é a surpresa de que te falei: seu nome é Ada. Ela queria
muito te conhecer.
O príncipe, guiado pelas mãos da feiticeira, passa para o outro lado da
fogueira e se aproxima da anciã. A energia que emana dela é algo que somente ao
prenúncio do furacão poderia se comparar. Deixa sua alma em êxtase, sensível,
agitada, ao mesmo tempo possuída pela mais absoluta paz. Uma paz tão imensa que
chega a tirá-lo do eixo.
Já muito perto de Ada, não consegue conter-se e se ajoelha
apaixonadamente, agarrando a terra próxima aos seus pequeninos pés descalços:
– Minha mãe… – chama-a, sem saber por que, sem conseguir impedir as
lágrimas de rolarem por toda a face.
Ada toca em seus cabelos. Levanta o rosto do rapaz e enxuga suas lágrimas
com sua mão enrugada, enquanto fala com a voz mais doce e rouca que ele já
ouviu:
– Filho querido. Sempre esperei por esse dia… você é o Escolhido, filho.
Andy não entende o que ela quer dizer com isso. Fica confuso, contraindo
o cenho e seus lábios enrijecem à procura de palavras que a façam explicar.
Mas não encontra. Tudo que brota de si são sentimentos e uma vontade de
entregar a essa mulher desconhecida todos os segredos de sua alma, como se,
apesar de nunca tê-la visto, ela o conhecesse há séculos.
Ela sabe que nada vai sair de sua garganta essa noite, não até que a
catarse de suas emoções esteja completa.
Ele a aceitou, sua reação foi como ela esperava. Ada está satisfeita. Seu
único pedido, feito com um sorriso puro e o coração cheio de ternura, é:
– Toca para mim, toca.
Andy soluça, contrai os lábios, bate a terra das mãos e pega o violino.
Aperta a crina do arco, respira fundo e começa a tocar uma canção tradicional para
rituais mágicos. Seus olhos não conseguem secar, ele toca e chora e logo seu
êxtase se espalha pela roda.
As mulheres dançam e cantam ao seu redor e os homens o acompanham tocando
também, fervorosamente. Ada sorri e de seus olhos também saem lágrimas de
felicidade.
4 comentários:
Só de pensar que "vivemos" em Elion , pois está fantástica história acontece aqui mesmo, neste nosso continente , pois o mapa também tem o formato de um coração .E neste novo começo , nesta nova era, temos muito que aprender, com as fantásticas crônicas da autora, que nos leva a conhecer novos horizontes, que nos faz viajar com seus personagens e enredos em nossa imaginação .
Muito bom má!
Deixa que a guerra leve toda a alma daqueles que antes puros agora param de valorizar a vida como se homens fossem simples peças de xadrez ;D
Má desde de segunda-feira que venho aqui para me encontrar com Andy,mas ele não veio. Por favor faça ele voltar. Esta leitora assídua agradece muito.bjs
Capítulo muito bem escrito, adorei!! Muito legal ver o Andy crescendo e, como diria meu namorado, fazendo maneirices. E achei fofíssimo o parágrafo em que você fala sobre ele e o Poler como pai e filho. <3
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