segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Capítulo 15 - "A Velha"



É quinta-feira. A noite já caiu. O príncipe adentra o quarto depois de um longo dia de trabalho, carregando uma imensa e pesada chaleira de prata com água quente até a borda. Na outra mão traz um castiçal com cinco velas acesas. Entra no banheiro empurrando a porta com o corpo e despeja o líquido fervente na tina de madeira fazendo o vapor subir e os pavios das velas fraquejarem pela umidade.
Deixa o castiçal sobre o tampo da pia e leva a vasilha ainda quente, agora vazia, para junto da preciosa e única torneira. Das engenhosas tubulações do Palácio de Pedra, Andy libera mais água. Joga-a na tina, esfriando um pouco a que lá estava e começa a tirar, enfim, a roupa elegante do dia de trabalho. Desata o nó do pescoço, abre todas as abotoaduras, deixa tudo sobre uma cadeira que talvez não devesse estar ali.
Apanha a caneca de bambu que flutuava na água morna, molha os pés antes de entrar, como sempre faz, para que não sujem a água do banho. Entra com cuidado e senta devagar.
Não é bem assim que as pessoas se lavam em Elderwood.
Os aldéus permanecem de pé na tina, que tem a largura de um tonel de vinho e a altura dos joelhos de um adulto – nunca cheia até a borda – e se abaixam para pegar a água com a caneca e lançarem cuidadosamente sobre o corpo, enquanto esfregam uma bucha vegetal sobre o suor de suas peles claras. Ao final, vira-se a tina sobre o único ralo do banheiro, no canto, e pode-se ouvir a água descendo as tubulações ruidosamente até o som se esvair.
Andy não gosta muito do banho aldéu, inventou seu próprio método. Senta na tina e coloca as longas pernas para fora. Só as recolhe na hora de lavar os pés, última parte do corpo contemplada.
Ao final, seca os cabelos e coloca uma roupa bem simples arrematada por uma capa parda com capuz. Esquece os sapatos.
Abre o baú aos pés da cama, desenrosca os dedos do véu do dossel e pega um violino.
Escancara as portas da grande sacada e suspira sorridente olhando a noite lá fora. Sim, a essa hora todos já estão se recolhendo. Cobre a cabeça com o capuz e, animado, pula o parapeito pela lateral esquerda.
Escapa caminhando pelo telhado e depois pelos muros, sorrateiro. Ruma à cidade, para chegar ao extenso bosque que a ladeia. A lua ilumina o caminho com sua luz intensa, inibindo os lampiões a óleo que se espalham pelas calçadas.
É nesse dia da semana que, há dois anos, Andy se reúne com suas mestras dentro da mata, exceto quando chove, ou quando algo o impede de fugir. É o dia de seu Culto.

A religião em Elderwood é complexa e ao mesmo tempo muito livre. Não há nenhuma espécie de perseguição entre crenças distintas, embora exista uma "oficial" - que só é chamada assim por abranger quase a totalidade da população.
Aldéus acreditam na existência de um Deus Supremo, Criador do Universo, e, graças aos conhecimentos da era dos Homens Elétricos, têm plena noção do seu tamanho. Sabem a quantidade de estrelas e planetas mapeados, sabem das galáxias e de suas dimensões inimagináveis. Enfim, a obra Dele é infinita, mas, segundo sua crença, esse Deus Criador não é tão onipresente e onisciente assim. Ele precisa de ajuda para administrar todos os infinitos planetas habitados pelo cosmos.
Ao distribuir sua matéria cósmica pelo espaço, criou também o Espírito, e, para cada planeta habitado, outorgou poder a uma divindade para cuidar de cada um: a Deusa da Matéria e o Deus do Espírito. Esses casais dirigem a vida e a morte de todos os seres sob sua guarda, em cada um dos planetas.
A Deusa da Vida Material recebe muitos nomes. Na Terra é chamada por Deusa Mãe, Mãe Terra, Grande Mãe, Gaya, Cerridween e tantos outros, e é a força viva que rege a Natureza e todas as Leis Naturais. Desde as leis físicas como a gravidade até os instintos animais, que incluem o Homem, como o da sobrevivência e da reprodução.
O seu par no casal divino, o Deus do Espírito, é chamado também de várias formas: Deus da Morte, Deus Pai, Deus das Almas e Deus do Destino. Seu trabalho é exclusivo à Humanidade. Os humanos são seu assunto. Ele trata da consciência - da culpa e da virtude – que não cabe aos animais. Os animais são regidos pela Mãe, mas a mente dos homens segue as Leis do Pai. Estar em paz é encontrar o equilíbrio entre os dois: o corpo e a mente, o Deus Pai e a Deusa Mãe.

Há em Elderwood, assim como em vários outros reinos sobre Elion, quem tenha desfeito o Casal Divino. Há quem siga somente o Pai e ignore seu lado animal, construindo imensos e excelsos templos para adorarem sua divindade. São chamados de pátrices.
Possuem Sacerdotes, cultos próprios em horários marcados, mas deixam o templo aberto para receber orações de quem quiser entrar.
Os adoradores apenas da Mãe acabaram sendo chamado de pagãos, muito embora não sigam o paganismo ancestral à risca, tendo mudado muitos rituais e conceitos. O templo deles é a natureza, os cultos são marcados pelos ciclos da rotação da Terra ao redor do Sol, os movimentos estelares, as fases da Lua. A intenção é estar em pleno equilíbrio com o planeta natal, o rico ventre da Grande Mãe.
Foi essa a opção de Andy.

Bem que tentaram guiar o príncipe nos caminhos da doutrina do Casal, fazê-lo frequentar também o Templo do Deus das Almas. Andy ficou curioso em um primeiro momento, aprendeu seus fundamentos quando chegou, como aprendeu todas as outras coisas que sua função exige que saiba, mas não gosta de cultuá-Lo. Não como à Deusa.
O Deus das Almas é buscado no Alto, mas encontrado dentro de si, por isso seus cultos são silenciosos. Silenciosos demais para quem veio de Ecklacia… Seus fiéis unem suas mãos e fecham seus olhos, enquanto um Sacerdote repete palavras ditas há milênios, solenemente, e aguarda que elas sejam absorvidas pelos corações. Fala de amor e de perdão, fala de culpa. São lições morais.
A Deusa da Vida é cultuada com festa, barulho, mais ao gosto dos simples.
O Deus Pai trata de consciência sobre seus atos e pensamentos e também sobre o destino das almas – por isso chamado de Deus dos Mortos. Trata do bem e do mal, da virtude e do arrependimento. Algo além do instinto, além da sobrevivência orgânica. Esse Deus assusta Andy um pouco, mas o Sacerdote Mathya, respeitável ancião responsável pelo Templo da Capital, já lhe disse várias vezes:
– Os bons meninos não devem temer o Pai.
Andy sempre foi considerado um bom menino. Mas a Lei da Consciência e do Destino das Almas, às vezes contraria a Lei da Sobrevivência da Deusa. É difícil ser um rei e fazer seu povo sobreviver sem bater de frente com as Leis da Consciência. Se Andy fosse fiel ao Pai, conseguiria opinar sobre guerras?

As cinco bruxas estão reunidas com cerca de outras dez pessoas, jovens, em sua maioria. As roupas de todos ali são simples, tão simples quanto a que Andy está vestindo, e quase todos estão cobertos com a capa.
Apesar da inocência do encontro semanal, a maior parte participa sem avisar a família e sai na calada da noite, assim como o príncipe, aumentando a sensação de aventura que os traz até ali.
O segredo da prática é não uma regra, mas uma espécie de filosofia: um bom bruxo não deve alardear sua condição, deve sempre se esconder por trás da causa que defende, saber que tudo que lhe é concedido pela Mãe Terra pode ser tirado caso perca seu merecimento. Isso acontece com aquele que se acha capaz de subjugar os Elementos à sua vontade, usando-os apenas para massagear seu ego. Quando o sentido do “sagrado” foge dos rituais, a Deusa Mãe se desagrada e poda o bruxo, como se poda um galho apodrecido em prol da saúde da árvore.
As cinco bruxas, Marieva, Perséfone, Silvia, Thabata e Yeda, tanto ensinam a trabalhar os Elementos, quanto a obedecer à conduta do bom bruxo.
– Magia é consagração, não diversão. – alerta sempre Marieva.
Mas consagrar é muito divertido, de fato.
Normalmente abre-se uma página do livro e se pratica, ou alguém traz uma experiência e divide o que viveu e sentiu com o grupo. De experiências transcendentais a problemas pessoais, tudo ali é ouvido com atenção.
Da metade para o fim, o ritual transforma-se em dança em torno do fogo, toca-se instrumentos musicais e todos cantam as canções devocionais ali ensinadas. Quando era mais novo Andy cantava com uma voz bela e suave, mas desde os quatorze anos ela começou a mudar, desafinou, como é normal da idade. Aprendeu violino, enquanto a puberdade não ajuda, e, para que não desafine com ele também, está tendo aula três vezes por semana.
Na última reunião, depois de tanto tempo, Andy finalmente venceu sua timidez e contou ao grupo o que aconteceu naquele fim de tarde com o furacão em sua terra natal. O fato surpreendeu a todos e, por isso, para hoje tinha sido prometida uma surpresa por parte de suas mestras.
Andy chega ansioso e entra na roda iluminada no meio da mata. Todos se voltam para ele fazendo-o abrir mais os olhos e o sorriso, curioso. É quando percebe alguém diferente na reunião.
A visão deixa Andy hipnotizado: é uma senhorinha muito pequena – seu tamanho não é maior que o de uma criança de cinco anos. Quase não tem pelos no corpo, sua pele é enrugada e manchada. Desdentada, de olhos grandes, castanhos e serenos, ela o aguarda. Usando um vestido muito simples e uma pequenina capa com capuz, ela fixa em seus olhos. Aquele olhar parece uma flechada no fundo da sua alma, toca o poço mais profundo de sua emoção.
O adolescente não consegue se mover. Tem lágrimas a escorrerem devagar pelo rosto: quem é essa mulher?

A bruxa Marieva aproxima-se de Andy, toca seu ombro e, entendendo sua emoção, a qual ele mesmo não entende, lhe apresenta:
– Andy, essa é a surpresa de que te falei: seu nome é Ada. Ela queria muito te conhecer.
O príncipe, guiado pelas mãos da feiticeira, passa para o outro lado da fogueira e se aproxima da anciã. A energia que emana dela é algo que somente ao prenúncio do furacão poderia se comparar. Deixa sua alma em êxtase, sensível, agitada, ao mesmo tempo possuída pela mais absoluta paz. Uma paz tão imensa que chega a tirá-lo do eixo.
Já muito perto de Ada, não consegue conter-se e se ajoelha apaixonadamente, agarrando a terra próxima aos seus pequeninos pés descalços:
– Minha mãe… – chama-a, sem saber por que, sem conseguir impedir as lágrimas de rolarem por toda a face.
Ada toca em seus cabelos. Levanta o rosto do rapaz e enxuga suas lágrimas com sua mão enrugada, enquanto fala com a voz mais doce e rouca que ele já ouviu:
– Filho querido. Sempre esperei por esse dia… você é o Escolhido, filho.
Andy não entende o que ela quer dizer com isso. Fica confuso, contraindo o cenho e seus lábios enrijecem à procura de palavras que a façam explicar.
Mas não encontra. Tudo que brota de si são sentimentos e uma vontade de entregar a essa mulher desconhecida todos os segredos de sua alma, como se, apesar de nunca tê-la visto, ela o conhecesse há séculos.
Ela sabe que nada vai sair de sua garganta essa noite, não até que a catarse de suas emoções esteja completa.
Ele a aceitou, sua reação foi como ela esperava. Ada está satisfeita. Seu único pedido, feito com um sorriso puro e o coração cheio de ternura, é:
– Toca para mim, toca.
Andy soluça, contrai os lábios, bate a terra das mãos e pega o violino. Aperta a crina do arco, respira fundo e começa a tocar uma canção tradicional para rituais mágicos. Seus olhos não conseguem secar, ele toca e chora e logo seu êxtase se espalha pela roda.
As mulheres dançam e cantam ao seu redor e os homens o acompanham tocando também, fervorosamente. Ada sorri e de seus olhos também saem lágrimas de felicidade.

4 comentários:

Unknown disse...

Só de pensar que "vivemos" em Elion , pois está fantástica história acontece aqui mesmo, neste nosso continente , pois o mapa também tem o formato de um coração .E neste novo começo , nesta nova era, temos muito que aprender, com as fantásticas crônicas da autora, que nos leva a conhecer novos horizontes, que nos faz viajar com seus personagens e enredos em nossa imaginação .

Unknown disse...

Muito bom má!
Deixa que a guerra leve toda a alma daqueles que antes puros agora param de valorizar a vida como se homens fossem simples peças de xadrez ;D

Unknown disse...

Má desde de segunda-feira que venho aqui para me encontrar com Andy,mas ele não veio. Por favor faça ele voltar. Esta leitora assídua agradece muito.bjs

Fernanda Nia disse...

Capítulo muito bem escrito, adorei!! Muito legal ver o Andy crescendo e, como diria meu namorado, fazendo maneirices. E achei fofíssimo o parágrafo em que você fala sobre ele e o Poler como pai e filho. <3