segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Capítulo 10 - "O Palácio de Pedra"

 

Poler chama Andy para sair da carruagem com duas batidas firmes na porta de madeira entalhada:
– Chegaremos em menos de uma hora, Vossa Alteza. É melhor que comeceis a arrumar-vos.
– Sim, senhor. – responde obediente o garoto lá de dentro, levantando-se rápido do estofado.
Poler sorri e suspira, balançando a cabeça:
– Não, Alteza: não me chameis de senhor. Eu sou vosso serviçal, meu senhor é vós. Eu obedeço a vós, entendestes?
 – O príncipe não deve obedecer? – estranha Andy – Não foi assim que minha mãe me ensinou…
– Muito bem: meninos bem educados obedecem aos pais.
– Ué! E príncipe não é bem educado?
– Não, Alteza: príncipe é mimado, o que é bem diferente.
Andy de fato não saberia precisar a diferença, mesmo porque mimado nunca foi. Apesar de seu pai saber que era especial entre os irmãos, ele jamais recebeu um tratamento diferente. Jason sempre o fez acreditar por todos os dias de sua vida que ele era um garoto como qualquer outro e certamente seria contra sua partida de Ekclacia. Mas o destino às vezes se impõe sobre os desejos dos homens.
O jovem príncipe se espreguiçava quando encontra ao seu lado uma muda de roupas que alguém lhe deixou enquanto dormia. É tão diferente do que está acostumado a vestir... Sai da carruagem pronto, embora todas aquelas abotoaduras tenham lhe dado muito trabalho. Está belíssimo. No lugar de seus trapos costumeiros, usa botas, calças azul-marinhas, casaca branca e, dentro dela, uma camisa azul com gola dupla enfeitada com bordados. Ian sorri:
– Parece que foi feito para vós.
Andy não entende:
– E não foi?
– De certa forma. Mas quando feito, não tínhamos ideia do vosso tamanho. Tínhamos algumas opções aqui conosco e achamos que essa era a mais adequada.
– Notei. Os sapatos estão apertados.
– Quais não seriam para quem nunca usou sapatos na vida como Vossa Alteza?
– Ah, Poler, chega de me chamar assim. – resmunga com jeitinho, sorrindo – Me chame de Andy.
– Não posso.
– Ninguém está ouvindo… – provoca.
– Eles estão, vedes? – mostra os demais Oficias que os esperavam.
– Eles não se importam. Olhe, eles estão com cara de quem está se importando?
– Não… – nega chegando perto do aborrecimento.
– Fale bem baixinho então…
– Não sejas difícil, Andy!
– Viu?! Você me chamou de Andy! – pula, brincalhão, até que sente dor nos pés pelos sapatos e tropeça, desajeitado – Urgh!
Poler suspira, desiste de ficar nervoso. Sorri com o olhar reprovador:
– Garoto bobo. Nunca faças isso na presença do rei, certo?
– Certo. – responde batendo a poeira das pontas das botas, não acreditando que vai ter que usar essas coisas para o resto da vida – Mas que eu estou ridículo não há dúvidas.
– Quieto. – repreende-o.
Andy sorri. Talvez esteja se tornando mais abusado por estar sem a autoridade paterna já faz dois anos. Gosta de ver Poler mandando nele, talvez seja saudade do pai.
O garoto é convidado a montar em seu novo cavalo, finalmente, e seu sorriso chega às orelhas. Acaricia sua crina com ternura, lembrando-se dos cavalos da aldeia, tão mansos, que pertencem a todos. O garanhão mais lindo que já vira pertencer apenas a ele é quase um desperdício! Tudo nesse novo reino parece tão sem sentido.
O príncipe e seus Oficiais chegam rápido aos limites da Capital de Elderwood.  Um pórtico de pedra os recebe, bonito, ornamentado por gárgulas em forma de cabeças de dragão, um pouco cobertas pela trepadeira viçosa que se alastrou formosamente por suas paredes. Andy ergue a cabeça e consegue ler antes de atravessá-lo: Shelter. Ei-la, enfim. Apesar disso, a cidadela ainda demora a ser avistada.
A paisagem que viria a ser seu novo lar é muito agradável: um campo plano muito extenso rodeado de matas como que escorridas da cadeia de montanhas a qual tiveram que atravessar. A estrada que os leva à cidadela é arborizada, oferecendo sombra confortável aos viajantes e uma brisa de aroma muito diferente do que Andy é acostumado. Não é melhor nem pior: são simplesmente outras plantas, outro clima, uma umidade no ar distinta e um quê de “civilização” que Ekclacia não podia almejar ser ainda por muitos anos. Não sabe se gosta disso, ainda preferindo o que é seu, o que lhe é familiar e de seu coração. Mas precisa admitir: que bela cidade eles tinham ali.

Quando se aproximam da área urbana, para surpresa do garoto, são calorosamente recebidos pela população. Ouvem os gritos alegres de velhos e jovens, sentem uma gostosa chuva de papel picado, observam o chacoalhar de bandeirinhas, pessoas que se esticam para tentar ver o rosto do novo herdeiro.
Andy pergunta baixinho a Poler:
– Isso é para mim?
– Sim, Alteza – sorri o Oficial.
– Mas como eles sabiam que chegaríamos hoje?
– Um dos nossos se adiantou e trouxe a notícia.
– Olha! Eles estão me acenando! – a criança acena feliz para seus súditos – Eles nem me conhecem e já gostam de mim!
– Ou será que eles gostam de ti porque não te conhecem? – brinca, transformando o sorriso bobo do garoto numa rápida carranca.
As belas e simples casas da cidade deixam Andy empolgado, afinal, governaria um reino bonito e aparentemente tranquilo, com pessoas amistosas, por sinal. Observa as ruas de paralelepípedo com calçadas ajardinadas, os vasos retangulares imensos encostados às paredes, repletos de flores da estação, a coloração alegre das portas e janelas de madeira das casas, quase todas com simpáticas varandas.
Tudo lhe dá uma maravilhosa impressão de Shelter. Não sabia o que esperar sobre o castelo, mas com certeza o que vê é bem mais do que esperava.
– Poler! Minha aldeia inteira cabe dentro desse negócio! – exclama boquiaberto – Acho que umas três vezes! Quem mora aí?
– O rei, sua esposa e os empregados. Alguns funcionários também. Eu mesmo tenho um quarto aí, quando fico até tarde trabalhando.
– Você mora aí?
– Durmo, e às vezes.
– Que legal! – empolga-se o menino – Poderemos brincar até mais tarde!
Poler balança a cabeça, ri, mas não nega. Bagunça os cabelos do garoto e dá um tapa no lombo de seu cavalo, que corre um pouco mais à frente.
O palácio é mesmo fantástico. Imensurável para o humilde aldeão. Ele andou ouvindo pelo caminho que era apenas uma das várias propriedades de Lucius III. Ele devia ter mais umas duas, tão belas quanto essa, só que bem menores, o que não era realmente problema. Eram habitadas principalmente por seus numerosos filhos e suas famílias.
O jardim de entrada é precedido por um magnífico portão de ferro forjado, com flores de aço adornando-o. A fonte nele é deslumbrante, rodeada por plantas exóticas, flores, esculturas de pedra e bronze, moitas podadas artisticamente e tudo que se possa imaginar num jardim real.
Na entrada, são recebidos pelos demais membros da Corte que se dividem em dezenas de outros Oficiais e todo o corpo de serviço: lavadeiras, camareiras, cozinheiras, mordomos, copeiras, jardineiros, tratadores e muitos outros funcionários que o novo príncipe nunca imaginaria nem sequer para enumerar, quanto mais para servi-lo.
         Andy desce do cavalo sem ajuda. Faz-lhe um carinho, pedindo-lhe sorte. Adentra timidamente o palácio. Lá dentro é ainda mais bonito. Que teto alto… Andy está maravilhado, chega até a segurar a respiração por um momento. Ian vê o brilho nos olhos do garoto e vai apresentando seu novo lar:
        – São três grandes níveis, não contando com o térreo. Há mais o sótão na ala esquerda, que funciona basicamente como depósito, comportando desde as roupas de cama, tecidos, documentos, máquinas de costura, até os uniformes e armaduras do exército nacional. Além de ser no sótão também o alojamento dos funcionários. Na ala direita os quartos possuem o teto mais alto, em compensação. Seu quarto fica no segundo andar, ala direita, isto é, teto alto.
– Ótimo! Eu sempre dormi embaixo no beliche! Sonhava com um teto mais alto!
– Se não gostares de teu quarto, diz a mim que eu providenciarei a mudança. O quarto será para toda a tua vida até tomares o poder, o que pode demorar. Então irás para o quarto Real na ala esquerda. A cozinha é maior que a tua antiga casa inteira e fica atrás da escadaria esquerda, a primeira entrada do corredor. Não te apegues muito à cozinha, pois só poderás comer na sala de jantar. Na copa só comem os empregados.
– Por quê?
– Tudo aqui envolve status, Alteza, é tudo questão de orgulho. Senhores não se misturam com empregados. Simples assim.
– Que horror. Eles parecem mais ricos do que eu!
– Agora silêncio. O rei está a caminho.
Andy cala-se imediatamente. Para quem disse que não mandava nele, até que Poler sabe fazer isso muito bem.
Olha para onde todos olhavam, engole seco: o que seu avô pensará dele? Como é o seu avô? Andy imagina um velhinho gordo de coroa e manto, tal como nos contos de fada contidos nos livros da aldeia. A imagem é um tanto diferente.
Sim, ele é velho. Mas está bem conservado, quase não tem barriga e se veste de azul-marinho profundo. Usa uma discreta coroa prateada e é muito, muito alto. Seus cabelos, mais longos e lisos do que os de Jason, são de um grisalho que se mistura ao tom da sua coroa. Suas rugas escondem um rosto bem proporcional. Sem dúvida é o pai do seu pai, pois podia imaginá-lo envelhecendo exatamente dessa forma. Infelizmente nunca verá. Ele entra com muitos empregados por perto, vestidos de vermelho, tão solícitos que pareciam querer prever seus desejos. Lucius olha o menino nos olhos e sorri. Diz:
– Então é esse o meu herdeiro… Recebi a correspondência dizendo que haviam o encontrado há poucos dias e desde então fiquei ansioso e curioso para conhecê-lo. Quer dizer que morava numa aldeia perdida no Reino de Mourões?
– Sim, senhor. – responde tímido, bem baixinho.
– De aldeão se tornou aldéu, heim? Sabe que os nativos de Elderwood são chamados de aldéus? Isso é importante que saiba.
– Eu sabia sim, senhor.
– Que bom! Bom começo! Seja bem vindo, meu neto. Qual é o seu nome?
– Andy.
– Andy?
– Andy Jenniz Mideline.
– É um belo nome. Mas Andy não vem de Andrew?
– Andrew é meu irmão. Meu nome é Andy mesmo.
– Ideia de Jason, suponho. – resmunga, mas disfarça – Bem, meu nome é Lucius, mas todos me chamam de Vossa Majestade. – ele gargalha.
Andy sorri, timidamente, respira fundo e recita:
– É uma honra poder ser o herdeiro deste seu maravilhoso reino, Majestade.
É examinado por um momento, sente isso, até ouvir a voz grave de seu avô:
– Andy, muitos anos depois que herdar meu trono, um outro jovenzinho irá vir até você e lhe dizer as mesmas palavras, pois foram as palavras que eu disse ao meu avô e que meu avô dissera ao avô dele. Confio em você para manter esse reino com a mesma garra que todos os seus ancestrais vêm mantendo durante os séculos.
– Que os deuses me permitam, meu avô.
– Meus criados o levarão aos seus aposentos. Está em casa, meu jovem. - sorri.
Uma senhora vai até o garoto, pega-o pela mão e leva-o pela escadaria direita. Andy olha para Poler, perdido. Poler sorri:
– Estás em boas mãos, Vossa Alteza. Não te preocupes.
Poler fala tão suavemente que Andy até se acalma. Mas o lugar é tão grande… Sente que seria capaz de se perder por lá na menor distração. 
A escadaria é incrível. Há carpete no primeiro andar e então os degraus se dividem, pois metade torna-se chão e metade continua subindo. O mesmo acontece quando chega ao segundo andar. O corredor que vem de ambas as laterais é enorme. Também tem carpete e as paredes todas são adornadas com madeira e pinturas, localizadas tanto na própria parede quanto em incontáveis quadros. A última porta à direita é seu quarto. A mulher sorridente o acompanha apenas até a entrada do cômodo. E, oh Céus: como este é imenso!
Pega todo o final da ala direita. O piso é de madeira. A cama é de casal ornada de um riquíssimo dossel.
A penteadeira possui um grande espelho oval, e é de madeira com muito verniz. Sobre ela há diversos perfumes caros e escovas de cabelo, além de misturas afrodisíacas milagrosas. Ele ri: não sabe nem pra que serve nenhuma dessas coisas.
Seu armário é gigantesco e suas portas são todas entalhadas com flores. As roupas de seus dez irmãos encontrariam espaço ali, até sobraria. Admira-se dele estar cheio: são várias roupas de variados tamanhos. Todas de muito bom gosto. Não para ele, é lógico. Acha-as ridículas.
Em uma mesinha de canto, encontra uma caixinha de música à corda, dourada, coberta de entalhes florais. Já é linda por si só, e ainda toca uma sinfonia ancestral. Descobriria mais tarde ser uma música da época dos homens antigos, os “homens elétricos”, como eles chamam. Andy gosta. Fica ouvindo.
Atrás das cortinas, o jovem aldeão encontra a sacada. Vai para fora e vê os jardins internos e outra fonte. É uma visão paradisíaca. Fica contemplando-os maravilhado.
Está tão cansado da viagem. Fecha os olhos: talvez fosse tudo um sonho.
Dorme ao som dos pássaros e da caixinha com a velha sinfonia, sentindo o aroma encantador do jardim.
Quanto tempo gasta ali, não é possível saber. Poler toca em seu ombro e Andy acorda.
– Então, o nosso príncipe também tem o dom de dormir em pé...
– Eu dormi? – pergunta sonolento.
– Como um anjo. Se é que os anjos dormem em pé. Vem almoçar. A comida já está esfriando. Lava o rosto e desce. O Rei aguarda-nos.
Andy entra no banheiro, dentro do próprio quarto. Acha-o lindo também, como tudo. Nunca entrou em um banheiro tão grande e limpo na vida. A cada passo se surpreende mais com o palácio. A água é cristalina e não tem gosto de barro. “Pela Deusa, quanto tempo eu perdi. Devia ter vindo aqui há muito tempo”, pensa admirado.
Mesmo assim, já sente falta de casa. Sabe que assim que conhecer tudo aqui, isso vai perder a graça e a solidão vai bater no seu peito. Então ele vai desejar nunca ter saído da sua casinha simples, do lado dos seus irmãos e irmãs, do seu lugar.
Andy penteia os cabelos – com muita dificuldade, diga-se de passagem – e desce. Todos já o esperavam. Ian, seu avô e mais um monte de gente que ele não conhece. O rei levanta-se e todos os convidados fazem o mesmo. Lucius espera Andy chegar mais perto e puxa-o exclamando:
– Vejam, senhores! Eu vos apresento meu herdeiro: Andy Mideline, filho de meu filho… qual mesmo? Ora, eu não vou lembrar agora! Tanta coisa para fazer, vou perder tempo decorando nome de filho! – todos riem, como sempre – E ainda mais eu que tive dezenove! Às vezes nem eu sei como! E aproveito a oportunidade para agradecer ao costureiro da Corte, pois seus espartilhos são a vida da rainha! – mais risadas – Deixemos tudo de lado agora, pois agora só me interessa receber muito bem o meu neto! E agradeçam, porque, se não fosse por ele, ninguém estaria vindo aqui comer de graça!
Todos brindam em seu nome.
Andy estranha os exageros do avô, mas no começo gosta disso. Seu lugar é ao lado direito do rei, que senta na ponta. A rainha senta do outro lado.
É uma senhora magra, que, aliás, nem parecia usar espartilho, muito elegante e muito triste. A tristeza de sua avó surpreende e sua distração também, pois, apesar de Lucius ter anunciado que o almoço era em sua homenagem, ela nem prestou atenção, nem foi cumprimentá-lo, ou sequer olhou para ele.
Andy não se importa, pensa que não é nada pessoal, mas fica observando aquela mulher de respeitáveis rugas escondendo um belo rosto.
Depois, surpreende-se com a quantidade de comida disposta na quilométrica mesa e ainda mais pelo fato de ali estarem, junto de tantos bons alimentos, alguns animais mortos. Espera que ninguém se importe se ele não comer isso… Sangue atrai sangue, é assim que pensam os ecklacianos.
Sentam-se com eles oficiais, barões, condes, tios e primos seus, sacerdotes, alguns feiticeiros, etc. O herdeiro acena para Poler lá do outro lado da mesa, na seção reservada para os Oficiais, e recebe um aceno de volta. Pelo menos em todo aquele mundaréu de gente tinha um amigo.

Depois do almoço, Andy vai conhecer todo o palácio, em estado de fascínio permanente. Conhece a cozinha, todos os cômodos do térreo, o jardim principal, o haras e mais à noite o salão de bailes. O jantar é mais informal, com apenas ele o avô e a avó, que finalmente lhe dirige um olhar e o cumprimenta, polida. Uma senhora realmente muito retraída e formal. Passa o dia todo bordando, em seu mundo paralelo, em contraste gritante com seu expansivo rei.
Alimentado e acolhido, Andy se despede de Suas Majestades e vai deitar-se. Amanhã conhecerá o resto do castelo. Outro dia cansativo, mesmo para um ativo garoto de doze anos.


2 comentários:

Marcio R. Gotland disse...

Muito bom Má Matiazi! Vou seguir acompanhando.

Unknown disse...

MÁ TERMINEI DE LER O QUARTO CAPÍTULO,NO AGUARDO PARA O PRÓXIMO.REALMENTE É EMOCIONANTE ESTE LIVRO,CADA DIA MAIS INTERESSANTE E CHEIO DE MISTÉRIOS.ESTOU TE SEGUINDO PARA PEGAR TODAS AS NOVIDADES.
GRATA.
VANDA MARIA