quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Capítulo 2 - "Manfred, O Itinerante"


Apesar da apreensão de Jason, um ano se passa sem surpresas.
Os galos começam sua competição vocal, juntamente com os passarinhos, assim que os primeiros tons solares invadem o céu a colorir a noite. As estrelas esmaecem, respeitosas, abrindo espaço para a chegada do astro-rei. Caretas de sono surgem pouco a pouco no rosto das crianças, algumas chegam a esconder-se entre os braços em protesto ao anúncio da manhã. Elas sabem que sua mãe foi quem provavelmente acordou os próprios galos e pouco tempo terão para permanecer em suas duras camas de palha antes que ela venha invadir o recinto sacudindo-os um por um.
Apesar dos resmungos preguiçosos, poucos realmente tinham aberto os olhos, até que um grito agudo soa no quarto da meninas:
– Ahhhhh!!!
Quantos segundos são necessários para que dez crianças pulem de suas camas? Ah, nunca bastaram tão poucos… Todos os meninos estão empilhados junto à porta do quarto das garotas e as irmãs rodeando a cama de Evelyn quando Jason e Cedes finalmente conseguem vislumbrar o quadro que gerou o grito apavorado: sua filha mais velha está sentada na cama, pálida, assustada com a estranha novidade que tinha deixado marcada sobre o lençol de algodão cru.
Ao vê-los fica muito corada, querendo morrer de vergonha: tinha acordado... mulher.
Os irmãos mais novos olham para os pais docemente preocupados, até que o rosto alarmado dos genitores vai se tornando cada vez mais sereno. Logo eles estão sorrindo. Entreolham-se carinhosos, Jason aperta o ombro da esposa e depois abre espaço para ela ir acolher Evelyn dizendo:
– Ah, minha querida… – consola-a, acariciando seu rostinho ainda tão infantil – Não se preocupe, está tudo bem, é a coisa mais natural do mundo.– a abraça, pois, mesmo sendo bem menos calorosa que o marido, Cedes sempre sabia o momento certo de abraçar.
– É nojento! – fala Dennis, numa careta exagerada, agora que sabe que a irmã não está ferida e logo tem um coro de crianças enojadas dando ênfase à sua opinião.
Evelyn aperta a mãe e chora envergonhada, escondendo o rosto sardento contra seu ombro macio. Jason olha feio para Dennis e logo bate palmas e chacoalha as mãos, espantando todas as presenças inconvenientes do quarto:
– Vamos, vamos! Para fora todos os marmanjos! Ficam apenas as meninas! A mãe de vocês precisa ter uma conversa de mulher agora.
Vai empurrando os meninos que escapolem travessos. Apenas Felix e Andrew, os ciumentos irmãos mais velhos de Evelyn, estão quietos. De olhos bem abertos, eles parecem chocados: a irmãzinha deles se tornou mulher? Mas já?

Não é nada incomum, na verdade, Evelyn já tem quatorze anos. A puberdade marca uma nova fase, Jason está verdadeiramente emocionado.
Consegue rever todo o crescimento da filha diante dos olhos castanhos, que ostentam agora leves e valorosas rugas. Sua primeira menina… Ah, isso é muito especial para ele, o ensina sobre seu próprio amadurecimento como homem, como pai.
Queria ensinar à prole o quanto isso era positivo e, já que tinham feito o favor de deixar a irmã ainda mais constrangida, deveriam agora lhe fazer um agrado. Mesmo com a má vontade de alguns, Jason consegue convencê-los:
– Vamos comemorar, Midelines! Sabem qual fruta Evelyn mais gosta? – pergunta sorridente.
– Aquela branquinha! – fala Heidi, agora com três anos, erguendo o bracinho rechonchudo.
Os rapazes a olham surpresos:
– Heidi! – fala Joshua, tão severo quanto um menino de cinco anos poderia ser – Você tinha que estar no quarto ouvindo a mamãe falar coisas de mulher!
Ela abre bem os olhos e a boca, como se estivesse cercada. Sai correndo de volta para o quarto e seus pezinhos descalços mal fazem ruído ao tocar o chão.

Os meninos vestem-se rápido, o sol ainda está se alongando para sair detrás do horizonte quando os Mideline já começam a sair pela porta. Jason conta seus seis garotos em fila na frente da humilde casa, ajeitando a roupa dos mais novos, percebendo que aqueles homenzinhos de bochechas rosadas e peles macias logo iriam crescer também, tão rápido. Troca sorrisos com cada um deles, suspirando de amor, observando os que se parecem com ele, os que lembram mais a mãe… Onze filhos saudáveis, o que mais poderia pedir da vida?
– Bem… nós vamos agora ao bosque e… – antes mesmo que pudesse terminar as instruções, porém, uma vizinha, a senhora Ilome Tristian, o interrompe empolgada, carregando seu último bebê de apenas quatro meses com um dos braços gorduchos e chacoalhando o outro, como se todo aquele povo pudesse fugir antes de ouvir sua novidade.
– Jason! Meninos! Vocês viram? Já sabem? – seus olhos azuis estão imensos e brilhantes. Não deixa nem que eles respondam, pois era claro que não sabiam e essa era a grande graça para ela – Uma conestoga enorme chegou antes do sol nascer e parou na praça! – em Ecklacia só há uma praça.
– Uma conestoga? – Jason a olha meio de lado, tentando lembrar que diabo era isso, deixando os filhos um pouco frustrados, pois era para ele que planejavam perguntar. Mas ele lembra – Ah! Aquela carroça coberta?
– Isso! - afirma a vizinha, tão empolgada – Thales e eu estamos achando que é um caixeiro viajante! Você lembra quando foi a última vez que um apareceu por aqui, Jason?
Ele sorri, coça a nuca:
– Muito tempo.
De fato, nenhum de seus filhos, nem mesmo Felix que acabara de completar dezesseis anos, tinha nascido quando o último por lá passou. Os olhos dos jovens brilham quase faiscantes e a missão de colher as frutas favoritas de Evelyn se tornou agora ainda mais enfadonha.
– O que é um caixeiro? – pergunta o caçula, Joshua.
– É um homem que rouba criancinhas. – fala Francis, maldoso.
– Não, é um homem que fabrica caixas! – corrige Andrew.
– Ora! Não é nada disso! – fala Dennis emburrado.
– É um homem que conduz conestogas… – sorri Andy, indo abraçar a cintura do pai – É só isso que sei até agora.
Jason sorri em resposta e bagunça seus cabelos castanhos carinhosamente, sempre impressionado com a boa memorização de seu sétimo filho:
– É, meu garoto, conduz… – fala com todos – Conduz conestogas cheias de produtos que traz de diversos lugares. É um comerciante itinerante. Com certeza trouxe coisas que vocês nunca viram antes! – abre bem os olhos, deixando até a Senhora Ilome ainda mais interessada – E sabe o que precisam fazer para irem ver o que o caixeiro trouxe do outro lado do mundo?
Seus filhos quase não conseguem suportar a ansiedade, até prendem o ar. Jason completa categórico:
– Pegar as melhores cerejas brancas do bosque para sua irmã Evelyn antes que ela termine o banho!
Mal acaba de falar, seis meninos saem em debandada. A vizinha observa aquilo e não resiste a gargalhar. Pergunta enquanto ajeita o bebê na manta puída:
– E suas meninas? E Cedes? Onde estão?
Jason suspira, os braços cruzados:
– Temos uma nova mulher em casa. Evelyn nos presenteou com seu primeiro ciclo nesta madrugada. Pode imaginar, Ilome? Minha menininha…
– Hm… Que Jerome não saiba! – pisca – Vai querer pedir a mão dela ainda hoje!
Os dois riem. Jerome é o quarto filho de Amin. Tem dezoito anos, mas ainda não noivou, pois diz estar esperando por Evelyn. Diz isso a todos, menos à pobre menina.


Cedes deixou Lenora cuidando das menores depois de uma longa explicação sobre os ciclos da lua e sua influência no corpo das fêmeas. Explicou que sim, todas as fêmeas da natureza têm suas “luas”, que isso as permite terem filhotinhos. Que o sangue não é sempre morte, que pode ser vida, e que Evelyn tinha finalizado uma etapa de sua jornada, mas que não era menos menina agora por causa disso.
Foi com a garota até o rio mais próximo, deixou-a se banhar com água corrente, observou a transformação do corpo dela com um velado orgulho: Evelyn é muito parecida com ela mesma quando era mocinha.
As tranças são um pouco mais escuras que as da mãe, possuindo um belo tom de cobre, brilhante. Mas tem bastante cabelo, ao contrário de Cedes que parece perder mais um pouco da largura da trança a cada ano vivido. Evelyn parece uma pequena viking magricela e tímida, receosa até do olhar da mãe na margem do rio. Sempre foi assim. Enquanto os irmãos e irmãs se banhavam nus brincando com os vizinhos, Evelyn se afastava e logo saía da água, cheia de pudores.
Se sente tão diferente, como se aquela aldeia não fosse seu mundo, aquelas pessoas não fossem sua gente. Será que poderia ter nascido em outro lugar?
Ah, a adolescência e sua impressão de “não pertencer”... Evelyn abraça a si própria sentindo o rio correr entre suas pernas de forma tão literal. Foi por isso que sua mãe a trouxe ali. Dentro dela tem um rio agora, um rio vivo que a faz mulher e que a permite ser mãe, como a Terra, a mãe de todas as mães.
A menina olha sua genitora ao longe e suspira desanimada, voltando a olhar para onde o rio corre, pensando onde ele deságua: já ouviu falar do mar, mas nunca o viu. Um dia verá, mas apenas quando se casar.
É tradição entre os ecklacianos os casais em bodas irem ter suas núpcias nas praias de Anelezia. Não quer se casar com ninguém que conhece, não quer essa vida que está escrita para ela. Viu Ecklacia no mapa da escola. Ou melhor, não viu. Tem mundo demais ao redor e ela não quer ficar presa ali, nesse lugar que não existe. Evelyn não quer ter onze filhos e trabalhar até morrer.

Quando as duas retornam ao lar, uma linda mesa de frutas e até um pão cedido por Ilome em homenagem ao grande dia - mas sem deixar isso explícito, pois sabe o quanto Evelyn é reservada - as espera. A garota até sorri.
– Tudo isso?
Seu pai a abraça:
– Não é todo dia que uma flor desabrocha. Não fazemos festa quando chega a primavera?
– Fazemos… – sorri docemente, corada.
– Sua primavera chegou. – lhe diz com carinho, tocando a pontinha de seu nariz com o dedo de pele tão áspera.
Mal sentam ao redor da mesa de madeira rústica, Joshua já sobe na sua banqueta e anuncia:
– Cerejas na mesa! Podemos ir ver o caixeiro viajante!
– Nada disso! –Jason o repreende – Tome seu desjejum primeiro!
– Caixeiro? – pergunta Cedes, estranhando.
– Com uma conestoga! – sorri Andy, abrindo bem os olhos verdes com um naco de pão na mão – De dois cavalos! – não fazia a menor ideia do que era isso, mas adorou a palavra e estava curiosíssimo.
Todas as meninas fazem uma careta confusa quando ele fala isso. Ah, mas basta saber que o viajante trazia coisas de vários lugares do mundo que o interesse é geral!

Um dia a menos trabalhando na lavoura não mataria ninguém de fome. Ainda bem, pois a aldeia inteira teve a mesma ideia de faltar ao trabalho nesse dia e, quando finalmente o último Mideline consegue sair de casa - o que é sempre uma tormenta! - a praça já estava lotada.
O estrangeiro já tinha armado uma verdadeira feira na praça, o sol já iluminava sutilmente os produtos expostos - livros, jarros, tecidos, instrumentos musicais, urnas de couro, chapéus, castiçais, fantoches, xales de lã coloridos, ferramentas e copos de metal, caixas de música e mapas, muitos mapas atualizados nessa paisagem política sempre mutante de Elion - enquanto o caixeiro toca uma sanfona de detalhes dourados, coisa mais preciosa que os aldeões já tinham visto, cantando num sotaque esquisitíssimo alguma estória vinda de um lugar muito distante.
Os mais novos já saem correndo felizes e empolgados para o meio da multidão. Cedes e Jason não se importam. A comunidade é unida e todos cuidam com carinho da prole alheia: sabem o nome das crianças e de quem são filhos. Não há, portanto, motivos para se preocuparem. Vão caminhando de mãos dadas ouvindo a música inédita ao ouvido dos ecklacianos, naquele instrumento tão exótico e sonoro. Cedes até se arrisca a bailar um pouquinho, inocente e animada pelo acontecimento tão raro por lá. Jason sorri para ela.
Felix e Andrew, inseparáveis, vão se aproximando devagar, no ritmo mais contido dos pais, querendo provar já serem adultos. Provar principalmente para as filhas da viúva Olga Caol, Barbara e Samya, que caminham de braços dados e olhos compridos sobre os produtos do viajante. Barbara, bela jovem de cabelos cor de mel, levanta os olhos do mesmo tom para Felix só por um instante. Suficiente para suas bochechas queimarem e ela desviar o rosto num sorriso sutil e delicioso. Felix derrete-se todo, coça o queixo querendo sentir a aspereza da barba feita. Queria que Barbara visse nele um homem para que não se sentisse ridículo quando a pedisse em namoro. Está se alongando demais para tomar coragem.
Chega a estufar o peito, mas disfarça quando Andrew o cutuca e aponta:
– Felix! Olha só aquilo! – e corre para um dos caixotes recheados de livros, esquecendo por completo que não era mais uma criança.

Evelyn não sabia o que era roupa íntima, assim como nenhuma ecklaciana antes da puberdade, e quase não quis sair de casa, se achando desajeitada ao andar com a toalhinha entre as pernas. Só que não, nem ela resistia ao chamado da novidade.
Os olhos estão tão baixos, parece que todos estão reparando, que o que aconteceu com ela está escrito em sua testa contraída. Lenora a acompanha. Bem que queria já ser mulher como ela, até se esforça para parecer mais velha e imita muito a irmã. Só quando está feliz demais, aí não tem jeito: basta ver uma boneca de pano exposta sobre um caixote que sai correndo extasiada para tê-la em suas mãos, fagueira e sonhadora.
Jason tem trabalho para fazer com que os menores parem de pegar os produtos sem permissão. Os seus filhos, os filhos de Amin, de Gwen Moya, de Sebes Moya e Adelin Caol… ah, e os de Francis Jenniz, dos Tristian também e... oh, Céus, quantas crianças nessa aldeia!
– Não conseguem ver nada sem colocarem as mãos?! – protesta exausto.
Andrew não conseguia, os olhos arregalados folheando livros em frente a uma imensa prateleira:
– Quantos! Eu… eu quero todos!
Felix folheava um, desinteressado. Não queria nem saber de histórias, só queria ver onde estava Barbara Caol. Ah sim, lá estava ela: batendo palmas enquanto o caixeiro cantava:

Minha casa tem quatro rodas
Tem oito pernas compridas
E carrega nas costas as histórias
Mais loucas que ouviram na vida

E era a tal “casa” que absorvia toda a atenção de Andy: então era isso uma conestoga? Que interessante... 
Arcos bem altos sobem pela estrutura da carroça, seis no total. Seis arcos, quatro rodas coloridas. A lona que a cobre é branca, já encardida.Em sua lateral está escrito em azul cobalto: “Manfred, O Itinerante”. Manfred…
Andy sobe sorrateiro pelos degraus e vai ver como ela é por dentro. A iluminação é bonita ali, o sol passa suave pela lona. Ainda tem mais produtos por lá, como cabe? Enfeites exóticos para se pendurar no teto, coloridos como Andy nunca viu, além de almofadas de seda e muitos mapas enrolados. Andy desenrola um e lê entretido.
Vê as rotas, os reinos. E, assim como pensou Evelyn, Ecklacia não é mencionada nos mapas, apenas o Reino de Mourões. Tão pequenino a noroeste de Elion, fazendo fronteira com quatro reinos maiores: Kophand, Alenezia, Cirrus e o imenso Yhwin.
Fica tão entretido que não percebe o momento que o caixeiro para de cantar e começa a conversar animadamente com o povo:
– Bem vindos todos ao comércio itinerante de Manfred! – ergue os braços, expansivo – Nascido em Daichwood, perdido pelo mundo desde os tenros anos da juventude há muito partida, trago comigo o que há de melhor, selecionado com esmero entre os quatro cantos de Elion! Vejo um interesse imenso dos cidadãos da respeitável aldeia! Creio que preço melhor que o meu não vão encontrar nem em cem léguas ao redor! – ri – Porque sinceramente não encontrei coisa alguma há cem léguas desse lugar!
– Veio parar no fim do mundo, Manfred! – esbraveja a voz rouca e animada de Amin Abhann, seguida de uma gargalhada sonora imitada pelos demais homens da aldeia.
– O fim do mundo tem várias pontas, senhor, e confesso que já fui parar em uma porção delas! Mas pelos meus mapas, que podem adquirir por um preço irrisório de cinco Cartas, posso assegurar que seguindo acima encontrarei o Reino de Anelezia e mais um monte de água salgada logo após!
Sim, as praias de Anelezia, qual casal ali não conhecia? Felix olha novamente para Barbara que devolve o olhar pensando se um dia conheceriam o mar juntos… Mas então a futura sogra – quem sabe? – Olga Caol avisa:
– Não vai encontrar nenhuma Carta aqui, Senhor Manfred! Somos subsistentes, até o Rei Heliodor – o governante de Mourões – já sabe disso!
– Faz três anos que não manda o cobrador de impostos para cá, porque acha a viagem muito longa para voltar apenas carregado de milho! – avisa Celine Tristian carregando um filhote de cabra que também se pronuncia sonoramente num longo béééé!
Manfred faz uma careta incrédula:
– Subsistentes? Isso ainda existe? – a careta piora pela concordância geral da pequena população – Não têm Cartas? Nem pecinhas de ouro?
Todas aquelas cabeças loiras e ruivas, de cabelos desgrenhados, balançam em negativo ao mesmo tempo. É, Manfred agora tem que concordar: veio parar no fim do mundo!

Cartas é como é chamado por essas bandas os documentos de títulos, o que era costume se chamar de “dinheiro”. Títulos de posse de ouro ou qualquer outra forma de valor, mas que depois começaram a valer por si só, sem significar necessariamente que uma pessoa possui ouro ou não. Seu valor é flutuante, em alguns reinos uma Carta vale mais ou menos que em outro, mas a moeda é a mesma em todos os lugares. Isto é, em todos os lugares em que ela é usada.
A decepção de Manfred é tanta que se espalha ao seu redor. Ele perdeu a viagem. As crianças olham seus pais com os ombros murchos, como se dissessem “não vamos poder levar nada, não é mesmo?”.
O caixeiro se sente mal. Viu que trazia tanta alegria ao lugar, ao pobre povo tão isolado, mas que agora parecia gerar uma grande frustração nos subsistentes aldeões.
– Eu, an… Eu preciso continuar a viagem. O que vocês têm de interessante para me oferecer?
Um sorriso grande toma os rostos, principalmente das mães:
– Eu tenho uma compota de geleia que o senhor vai amar! - diz uma.
– Eu sei fazer perfume com casca de árvore de espinheira! Acho que tenho um frasco! – avisa outra.
– Quer ver meus colares de pedra do rio? Eu trago num instante!
A correria das mulheres de volta às suas casas para oferecer seus escambos ao viajante é imediata e o velho homem de fartos bigodes grisalhos e um simpático suspensório emoldurando a barriga avantajada fica realmente intrigado em como aquelas pessoas podiam viver. Sem Cartas… Dá para acreditar?

Fica ainda mais espantado ao perceber que quem mais tinha produtos interessantes – logicamente Manfred os ofereceria nas próximas cidadelas – não fazia questão de “gastá-los” apenas com os seus: Dona Ilome deu alegremente um livro para Andrew e a boneca de pano para Lenora. Cedes ofereceu em troca de sua mais bela cesta de palha, um mapa novo para a escola e um lenço colorido para que Felix presenteasse sua Barbara Caol. Todas as crianças ganharam algo à medida que iam pedindo, apenas um presente para cada uma. Todas coisas muito simples que guardariam com carinho e cuidado. Por que não as deixar felizes? Elas crescem tão depressa…
Panelas de barro, mantas de crochê, geleias, cestos, flautas de madeira, até tambores de festa foram entregues ao viajante em troca de tudo, principalmente livros. Os jovens os trocariam entre si mais tarde, todos poderiam aproveitar. Era impressionante que todos ali soubessem ler, mesmo que não soubessem como se calça um sapato. Chega a ser surreal.

A tarde passa gostosa, os ecklacianos mostram a Manfred que também sabem fazer boa música e ele é convidado a juntar sua sanfona aos pífanos, violinos rústicos e tambores. No meio da animada conversa com os adultos, bebendo a boa cerveja da aldeia, alguém pergunta o que o caixeiro fazia por esses lados, como “se perdeu” por lá.
– Estou andando mais a esmo do que de costume, confesso. Uma oferta que ouvi no sul me pareceu interessante, então comecei a procurar caminhos fora da rota com que sou acostumado.
– Uma oferta? – pergunta curioso o Senhor Keller Moya, trazendo sobre o ombro forte a primeira tora com a qual fariam a fogueira na praça.
– Sim. Uma recompensa graúda em troca de informações sobre o paradeiro do possível herdeiro do reino do sul. Só se fala disso entre os caixeiros! – dá um gole demonstrando apreciar o sabor da bebida, enquanto Jason Mideline arregala os olhos e empalidece diante da fogueira que ajudava a preparar, quase sentindo o coração arder novamente.
– Como assim? O herdeiro está perdido? – estranha Moya.
– É o que dizem. – responde Manfred – Iria perguntá-los sobre, mas pelo jeito não sabem nada a respeito…
– As notícias nunca chegam até aqui. – fala Jason, sério, quase rude, limpando as mãos no tecido da calça – Vivemos bem sem elas.
Manfred sorri, dá de ombros:
– Viver sem Cartas e sem notícias é um estilo de vida curioso, sem dúvidas. Mas se é bom para vocês, quem sou eu para dizer o contrário?

Ficam ali por mais algum tempo. A comida é repartida ali na praça mesmo. Ao final, os homens ajudam o caixeiro a guardar a mercadoria nova e o que sobrou da antiga dentro da conestoga. Andy e Joshua ofereciam grandes ramos de capim para os cavalos de Manfred. Quando as gêmeas já começavam a parecer sonolentas e Heidi já tinha dormido sobre a oferta de almofadas do viajante, Jason decide que era hora de recolher os aventureiros. Tinha sido um dia inesquecível para os pequenos, com certeza, mais ainda para Evelyn.
Felix tinha conseguido alguns goles de cerveja e criou coragem para falar com Barbara. Mas mal teve tempo de ouvir seu agradecimento gracioso e tímido depois de lhe dar o lenço colorido, pois a viúva Caol já chamou a filha mais velha enfaticamente:
– Barbara! O sol já se deitou, é nossa hora também!
E assim ela se vai. Bem, mas a semente foi plantada. Felix a vê se afastar, soma quantas vezes ela se vira para olhar para ele uma última vez: quatro lindas vezes.
Jason não o tinha incomodado, mas quando finalmente o procura já está muito preocupado, pois a noite já caiu e quase todas as crianças já estavam em suas casas, ou deveriam estar:
– Felix! Felix, você viu Andy?
– Andy? – estranha – Não, não vi. Será que ele foi conversar com os vagalumes? – sorri e vê que a brincadeira caiu muito mal sobre seu pai que arregala os olhos assustado.
Jason dá dois passos para trás e corre para os lados do bosque gritando:
– Andy! Andy!
Felix fica sem jeito, resolve que era melhor procurar o moleque para tranquilizar o pai. Mal sabiam que não era com o sétimo que deviam se preocupar, e sim com a terceira.
Evelyn tinha ido sozinha para casa no meio da tarde, sentindo as primeiras dores das cólicas, angustiada e chorosa pelos inclementes hormônios. Os belos rituais de transição que sua mãe a ensinou não a comoveram, a ideia de se tornar uma adulta, pegar a maldita enxada, se casar e passar o resto de seus dias grávida no meio de lugar nenhum era demais para ela. Acreditou que a visita do caixeiro justamente nesse dia tinha sido um sinal que ela não podia ignorar.
Pegou suas quatro mudas de roupa e enfiou numa pequena trouxa de tecido amarrotado. Não tinha sapatos, não tinha nem um pente. Jamais deixava os cabelos soltos das tranças para não ficar descabelada como Samara e Paulinne. Não tinha nada para si, nem nada a perder. Partiria junto com o “itinerante Manfred” até o próximo reino. Um reino que existisse…

Quando já podia ver o brilho da vela refletida por dentro da lona branca da conestoga, resolve que era hora de ir fazer seu pedido ao caixeiro, antes que ele fosse adormecer. Então vê sombras se movendo nos tecidos e ouve a voz de Andy. Ele estava lá dentro com Manfred, conversando:
– Por que quis viver assim? Não tem família?
– Ah, garoto, eu… – o velho homem bagunça os cabelos ralos com a mão calejada de guiar a corda da carroça – Eu abri mão das minhas raízes para poder voar no vento.
– Não podia voar sem perder as raízes? Você é um homem, não é uma planta. – ri.
– Não sei. Nunca vou saber.
Andy sorri, seus olhos tão verdes o observam com atenção:
– Mas você sabe o que acontece com a planta que não tem raiz, não sabe?
Manfred comprime os olhos pensando o que aquele garotinho encardido de sete anos poderia querer ensinar para ele sobre as plantas:
– O que, Andy? O que acontece?
Ele quase ri, de tão óbvio:
– Seca, ué! – ergue os braços – Eu não quero perder as raízes, só queria ter os galhos bem longos! – ri, esticando muito seus braços magros, abrindo e fechando as mãos – Sabe... – abaixa os braços e faz uma expressão pensativa, bem séria – Eu tenho muita vontade de saber o que tem atrás das montanhas. Às vezes eu queria mesmo passar para o lado de lá.
O caixeiro romantiza, enquanto enrola um tecido:
– Acha que encontraria a felicidade do outro lado das montanhas, garoto?
Andy ri:
– Não, Senhor Manfred. Eu poderia levar minha felicidade para o lado de lá, se ela já estivesse comigo, mas encontrar a felicidade não é como encontrar uma fada na pedra do rio.
– Não?
– Não. – estranha de novo ele não saber disso, é muito esquisito para uma criança explicar coisas óbvias aos adultos – Quem não é feliz com o que tem, não vai ser feliz com o que quer ter. O mecanismo não é assim… – contrai o cenho, sério.
– E como é o mecanismo, garotinho de Ecklacia? – Manfred se vê muito próximo dele, o examinando.
– Que eu saiba, só se é feliz de um jeito: trocando amor. – sorri.
Manfred e sua irmã, que ouvia tudo escondida do lado de fora com sua pequena trouxa de roupas de fuga, fazem a mesma expressão, quase dolorida, pelo questionamento estranho que aquele menino os fazia ter. 
Manfred vinha de fora e passou por tantos lugares diferentes... Isso só serviu para aumentar o contraste causado por essa aldeia perdida do meio do nada aos seus experientes olhos. Era possível viver de trocas? Era possível viver sem ambição ainda nesse mundo? Queria até ouvir mais e aprender mais com eles, mas tinha medo de que mexessem em demasia com sua cabeça. Não conseguiria ficar, mas temia também não conseguir continuar, pois sabe muito bem da maldade do mundo lá fora e tamanha inocência era quase uma agressão à sua alma madura.
Já Evelyn abraçava sua trouxinha envergonhada. Estava louca, completamente louca por ter pensado em fugir. Os pais que ensinaram seu irmão mais novo que a felicidade era trocar amor eram os seus pais. Os pais que a amam, que lhe encheram de cuidados nesse dia: por que os desprezava assim, com seus pensamentos egoístas? Por que tinha vergonha do que eles eram e do lugar que a tinham feito nascer? Não, pequenina, não é hora de partir. É hora de conversar com Jason e Cedes sobre seu futuro, sua vontade de fazer outras coisas além de roçar a terra e povoar a aldeia com filhos. Se eles a amam, e é certo que a amam, vão apoiá-la. A garota sorri com lágrimas a escorrer no rosto e, quando dá por si, está sendo observada por Felix.
Evelyn corre até ele e o abraça, seu irmão mais velho sorri sem dizer nada. Tem horas que ficar quieto é o melhor que pode fazer – embora ele use esse aprendizado pouquíssimas vezes. Olha para Andy que saía da carroça dando um pulo:
– Ih! Olha só! Já está noite!

– Pai! Paaai! – chamam os três, indo em direção ao bosque – Pai, onde você está?!
O som do mato cresce ao redor, tantos timbres, tantos ritmos diferentes… O perfume incomparável do bosque os envolve. Os vagalumes piscam lindamente e Andy abre um sorriso:
– Vagalum-...
– Shh! - interrompe Felix, preocupado com a demora em avistar o pai.
Evelyn ainda ameaça chamar mais uma vez por Jason, mas engasga com o que vê numa clareira logo à frente: um enxame colossal de vagalumes rodeia seu pai, que está de costas para os filhos. Ele parece ter algo brilhante nas mãos que as crianças não conseguem enxergar. Um brilho esverdeado lindo que reflete em sua pele muito mais que em suas roupas.
– Pai? – chama Evelyn, fazendo-o virar rapidamente para os filhos.
Por um segundo apenas ele parece outra pessoa. Algo místico, mágico o envolve, seus olhos parecem claros e refletem a luz como olhos de gato, mas logo essa impressão se vai, assim como aquele brilho incomum, e o pai atencioso que conheciam se aproxima preocupado, pronto para levá-los para casa.

Silêncio se fez entre os três irmãos enquanto se preparavam para dormir, ao contrário dos outros, tagarelando sem parar sobre as coisas incríveis que Manfred tinha trazido. Falam, falam, sem pausa, acendem diversas velas para lerem seus livros de estórias fantásticas, como as que o caixeiro contou, mas Andy não ouve nada, tentando apenas digerir o que viu.
Pouco antes de dormir, ele se aproxima de Felix que já fechava os olhos, pendurado no seu beliche, chamando-o baixinho:
– Felix… ei, Felix.
– Quê?
– Você viu aquilo? Na clareira? Quando encontramos o papai?
– O que eu tinha que ver na clareira, Andy? – fala meio emburrado, querendo dormir.
Andy franze o cenho. Então ele não viu? Ele não viu… Felix riria dele, acha melhor não insistir:
– Nada.
Deita em sua cama e fica ainda de olhos abertos. Não perguntaria a Evelyn também, ela sempre duvida dele, deve ter sido mesmo coisa da sua cabeça… E por esse receio, não saberia que, sim, Evelyn viu exatamente o mesmo que ele viu. E isso a transformou para sempre!
A magia deixaria a vida de sua irmã mais velha muito mais emocionante, mesmo dentro da pequena e desimportante aldeia onde nasceu, e a conversa sobre partir de Ecklacia seria adiada, indefinidamente.



5 comentários:

Marcel disse...

Que legal! Gosto muito quando tem seres mágicos nos contos, nos trás uma vontade de entrar um pouco mais no desconhecido, que também é uma parte de nossas vidas, uma pena termos criado um bloqueio para aceita-lo e aproveitá-lo. Estarei acompanhando o conto! Abraço

Marco Fischer disse...

A atmosfera desse capítulo me prendeu desde o início, e foi uma leitura agradável até o final. Adorei a maneira sutil como você introduziu as fadas. Me lembrou O Labirinto do Fauno, e é um dos meus filmes favoritos, então tire por aí.

Leona Hagebak disse...

Gostei demais desse texto ^^! Mesmo com muitos personagens e falas, ficou tudo muito claro e, na minha cabeça, parecia que eu estava vendo um filme ^^. Os momentos foram bem descritos, sem exageros ou faltas de informação ^^. Sua história está ficando bem interessante ^^. Espero que continue surpreendendo ^^.

Parabéns ^^/

Fernanda Nia disse...

Virei fã do besouro, hahahahahahahahahahaahhaah!!!

Mariana disse...

A sensibilidade do Andy me cativa!
E o a chegada das fadas me deixou muito feliz, eu amo fadas.
Estou curiosa para saber como a história irá prosseguir.