Dentro da noite, um cerimonial acontece no subsolo
do castelo. Para chegar até lá desce-se através de uma larga escada em espiral,
tendo ao redor paredes de pedra bruta, tal qual uma polida caverna. A sala de
reunião é muito bonita, mas bastante sombria: seu formato redondo, também de
pedra, sustenta belíssimos suportes para tochas rústicas.
Andy sente um cheiro de rio junto a um leve perfume
de incenso invadir suas narinas. Deveria se sentir bem, mas não. Ali é pesado.
Bandeiras carregando o símbolo do Reino de
Elderwood, um dragão de imponentes asas, ocupam o espaço entre as luminárias.
No teto ogival, a pedra bruta é trabalhada em esculturas de baixo relevo, onde
mais dragões e outros seres mágicos podem ser vistos. O piso é coberto por
finos tapetes, repletos de símbolos feiticeiros. Ao centro, a mesa oval de
madeira finíssima, mas muito, muito antiga. Intermináveis cadeiras
belissimamente entalhadas rodeiam-na.
Os Conselheiros Reais entram primeiro, Andy pede
para entrar com eles. Senta-se à mesa, onde cada lugar tem seu respectivo
ocupante de direito. Andy ainda não tem o seu: divide o espaço com Poler, que
vai, em voz bem baixa, explicando tudo que vai acontecer.
Em um longo ritual, o Conselheiro Mor, Senhor
Willian Deris, apresenta cada um dos cinquenta magos que fazem parte da
Assembleia. Andy fica impressionado com suas imponentes figuras, quase sempre
dotadas de longas barbas e mantos pesados. Alguns portam cajados e são
verdadeiros druidas, outros possuem casacos ornamentados com bordados em cores
vistosas, outros são mais sombrios, parecem assombrações. Por último, entra o
rei.
Estando todos presentes, Deris, senhor de mais
idade que Ian Poler, um pouco mais gordo, – o que não é difícil – bastante
calvo e com farto bigode unido às costeletas, lê a pauta:
Algumas mulheres estavam ensinando rituais mágicos
para pessoas leigas. O que fazer a respeito?
As opiniões se dividem: há quem não se importe, há
quem queira coibir. Um mago chamado Yeronimus Jobarth, magro, de barba rala,
longa e extremamente branca, levanta-se para ter a palavra e fala, enfático:
– É necessário que listemos quais práticas são
permitidas para todos e quais são perigosas.
– Concordo – comenta outro, careca, barba espessa e
grisalha e corpo mais gorducho, chamado Charles Freathorn – mas a lista de
rituais possíveis é muito extensa!
– Alguém se informou sobre quais práticas estão
sendo ensinadas? – pergunta outro cuja densa barba cacheada espalha-se pela
mesa, chamado apenas por Salomon.
A complicada questão toma horas, a discussão
torna-se até mais calorosa. O mago Maltrack, muito magro, de grande cabeleira
ruiva e barba curta, exclama:
– Isso é uma verdadeira banalização do ritual
mágico! Não é possível que estejamos mesmo cogitando liberar essas práticas
para os leigos!
Em meio ao tédio e o medo de comentar algo
publicamente, Andy acaba chamando a atenção de Poler, em um tom de voz muito
contido:
– Ei, Ian: sabe, de tanto ouvi-los falando de
magia, não consigo mais segurar de te contar uma coisa…
O Conselheiro ouve com atenção, enquanto Andy
conta-lhe o que aconteceu quando tinha nove anos nos campos de Ecklacia. De
como o furacão entrou em seu corpo e o chamou de Mestre da Magia.
Conta até dos Elementais com que convivia nos bosques perto de sua aldeia. Só
não conta que ainda encontra alguns nos bosques do Palácio, porque não sabe o
que ele vai pensar.
Poler fica boquiaberto:
– Por que não me contaste isso antes, Andy?
– Porque tinha medo que me achasse mentiroso,
louco, sei lá. Os únicos que acreditaram em mim foram minha irmã Evelyn e meu
pai, só que ele só confessou isso no leito de morte dele.
Aquele murmurinho irrita Maltrack, que lhes chama a
atenção:
– Posso saber o que Vossas Senhorias falam de tão
interessante que não possa ser dividido com todos do Conselho?!
– Sabe o que é, Vosso Poderio – responde Andy,
usando o título usado entre os magos para tratarem-lhe com respeito, deixando
Poler apreensivo pelo que o garoto pudesse vir a contar, mas ele continua – é
que eu comentava com nosso caro Conselheiro, por que será que ninguém teve a
ideia de trazer essas mulheres feiticeiras aqui para essa reunião. Só assim
elas podiam explicar o que elas estão ensinando, para quem, de que maneira e
por quê.
Um longo silêncio toma conta do recinto. Depois de
horas de discussão, é isso que o menino resolve dizer. Cinquenta e quatro
homens olham para aquela criança que olha de volta sem saber se fez mal.
Maltrack senta-se em sua cadeira, olha em volta,
suspira e fala entediado:
– Que dia Vossos Poderios estarão disponíveis?
De fato todos os presentes acabam por concordar que
essa discussão não levaria a lugar nenhum sem que os detalhes das práticas
fossem esclarecidos pelas praticantes. E assim termina essa reunião para que no
próximo mês seja retomada com a participação delas.
A saída não tem nenhum ritual e Poler pergunta, em
meio às conversas de despedida – que não incluía que se despedissem do garoto,
completamente ignorado pelos magos – ao seu pupilo:
– Mas de onde veio essa ideia?
– Ah, – responde despreocupado – eu estava pensando
isso desde o começo, mas ninguém pediu minha opinião. Daí quando ele pediu, eu
falei!
Poler abraça o menino com um dos braços e leva-o
para fora, escada acima. O rei os encontra no fim da escadaria e fala ao neto:
– Espero que venha para a próxima reunião. Não foi
uma ideia brilhante, mas foi útil. Quando esses anciões começam a falar, não há
quem os pare.
O rei sai, altivo. Andy olha para ele sem entender,
olha para Poler e este ergue os ombros e sorri:
– Não te preocupa, Andy, ele não sabe elogiar. – o
menino sorri, quando Poler comenta – Quanto àquilo que aconteceu contigo,
consegues imaginar o que quis dizer? Por que ficaste parado? Como que o tornado
foi entrar em ti dessa maneira?
– Não sei, Ian, nunca entendi. – responde
preocupado – Mas alguma coisa deve significar! Não acontece com todo mundo,
acontece?
– Andy, Andy… – balança a cabeça o Conselheiro
enquanto acompanha o menino até seu quarto num sorriso leve – tu és mesmo um
mistério da ciência…
***
Próxima reunião do Conselho, todo o ritual se repete.
Logo após a chegada do rei, cinco mulheres são convocadas: Marieva Frinch,
Silvia May Katrina, Perséfone Paifane, Yeda Amarantha e Thabata Awluch. São
elas as “acusadas” de estarem ensinando as práticas mágicas para os
interessados da população.
Willian Deris novamente lê a pauta, novamente
Jobarth, o feiticeiro mais antigo da mesa toma a palavra:
– Pois bem, minhas senhoras – todas as cinco são
casadas, mas duas são figuras mais jovens, sendo que Yeda conta apenas trinta e
dois anos – Será que podemos saber o que estão fazendo de fato?
Marieva, com seus oitenta anos de idade, a
aparência de uma velha índia de olhos azuis e cabelos muito longos e cacheados,
toma a frente, como a mentora das demais:
– Vossos Poderios, Vossas Excelências, Vossa Majestade…
Nossa intenção é humilde e nobre. Tudo o que fazemos é apresentar aos
interessados, em nossas reuniões semanais, tudo que nos oferece de livre acesso
nossa Grande Mãe Terra. O contato direto com os Elementais, os Elementos, a
conquista de sua simpatia, o poder da Natureza, a re-ligação… Tudo isso e
apenas isso.
Os feiticeiros se entreolham e um deles, chamado
Loris Thurmann, pergunta com sua voz estridente e rouca:
– E que práticas exatamente incluem esse “curso”?
– Práticas xamânicas, práticas iniciativas,
práticas que atraiam as forças naturais. Nada, repito, nada que mexa com as
forças ocultas. Todas são forças da Mãe Terra, nada de Espíritos das Trevas,
nada que não seja nossa essência. Já disse: re-ligação, aprofundamento de laços
e só.
– Que livro as senhoras usam? – pergunta Maltrack.
Silvia, de cinquenta anos, muito esguia, coloca o
livro sobre a mesa e diz:
– É todo manuscrito e as últimas vinte folhas foram
escritas por nós.
– E por que acham que suas práticas devem ser
permitidas? – pergunta o rei, enquanto o livro é manuseado pelo feiticeiro,
sendo imediatamente reverenciado pelas “convidadas” – Que benefício isso traria
ao meu reino?
– Permita-me. – pede Yeda, tomando a frente das
demais – Vossa Majestade, por uma simples razão: é Magia Branca, não agride,
não visa acúmulo de poder. Nossa vontade é que nossa função não seja mitificada
ou mistificada, queremos que a população entenda como a Natureza é especial, a
força purificadora que ela porta e assim reforçar o Pacto feito por nossos ancestrais e guardado por Vossa Majestade e
vossos futuros descendentes.
– Estamos juntos, – completa Perséfone – não
disputando com Vossos Poderios. A nossa função é complementar. O que fazemos
faz com que o povo glorifique ainda mais os verdadeiros detentores
do Poder…
É aí que Andy compreende sobre o que tudo aquilo se
tratava: os Feiticeiros tinham medo, não que elas pudessem estar fazendo algum
mau para o reino ou para as pessoas, mas que, com muitas pessoas tendo acesso
ao seu conhecimento, pudessem acabar sendo desbancados! Ora, mas que grande
bobagem! Que homens egoístas! O príncipe vê aquelas pobres mulheres tendo que
se explicar para aqueles homens rudes que deveriam aplaudir sua iniciativa e as
admira. Essa lição de humildade deveria se espalhar por toda essa mesa.
Maltrack passa, com desdém, o livro adiante e cospe
suas críticas:
– Bem, não vejo porque deveríamos nos preocupar com
essas práticas demasiadamente infantis. Aliás, não vejo nem como conseguem
adeptos a tamanho amadorismo.
– Todos devem começar do começo. – responde,
resignada, a velha Marieva.
Os próximos na roda folheiam seu livro, alguns com
mais respeito que outros. Quando chega às mãos de Poler, Andy estica os olhos e
o Conselheiro permite que leia.
Andy fica maravilhado. O que aquele livro prometia
ia muito além do que poderia imaginar! De Quiromancia à Viagem Astral. Entre
domar a chama de uma vela, chegando à de uma fogueira! E, veja só: conversar na
língua dos dragões! As lições vão se sucedendo até a levitação de corpo
inteiro. Que admirável! Seus olhos brilham.
Poler observa, folheia, passa o livro à frente e
cochicha para o pupilo:
– Quiromancia eu sei. – e sorri.
– É? – abre os grandes olhos verdes – Como
aprendeu?
– Minha avó era cigana. – espera a próxima
oportunidade e confessa – Já ganhei muito dinheiro lendo mão na rua. Mas isso
quando era criança.
– Leia a minha, Ian! Por favor! – contorce-se de
curiosidade.
– Depois, pequeno, depois. – despista, para não
chamar muito a atenção.
Andy que pensava que dessa vez seria mais rápido é
forçado a ver como os feiticeiros conseguem gastar duas horas inteiras indagando
e indagando o que lhe pareceu tão óbvio desde o princípio. Era mais importante
humilhar as mulheres do que resolver o problema. Queria muito ter uma solução
como da última vez para fazer esses poderosos velhos ranzinzas fecharem a boca.
Como se pode admirar e desprezar tanto as mesmas pessoas, pergunta-se Andy,
pois é isso mesmo que sente por eles. Queria saber o que eles sabem, mas não
ter um décimo de sua empáfia.
Quando não têm mais o que questionar e não acham
mais desculpa nenhuma para proibir a prática das boas senhoras, eles as liberam
e fecham a discussão:
– Mas estaremos sempre atentos! – avisa Freathorn –
Não vão se estender muito nessas lições. As senhoras não têm cabedal para
instruir futuros feiticeiros!
– E se alguém quiser continuar, avançar as práticas
– pergunta Thabata – podemos indicar Vosso Poderio para instrui-lo?
– Bem – desconversa o mago – antes devo avaliar
essa pessoa. Não é qualquer um que pode ser meu discípulo.
– Entendi. – as mulheres se entreolham com um
disfarçado olhar de zombaria.
Fechada a discussão, todos começam a se levantar.
Andy corre atrás das bruxas, animado como só ele.
Segura o manto de Perséfone para evitar que elas sumam de vista. Conquista a
sua atenção, falando baixinho:
– Senhora, senhora! Eu quero aprender! Vocês podem
me ensinar?
– Quem é você, menino? – pergunta a mulher, que não
tinha o visto no meio daquela enorme mesa.
– Meu nome é Andy! Tenho treze anos! Já vi
Elementais! Eu aprendo rápido! Por favor, me ensinem. – olha-a com um olhar
pidão.
Ela olha as outras que param para observar. Parece
haver uma telepatia ali, pois Perséfone logo responde:
– Nós não temos alunos tão novos, mas… se você já
viu Elementais. Afinal, o que está fazendo aqui?
– Ah, eu vi tudo! Sou o herdeiro do trono.
– Ei, menino – alerta Silvia, num sussurro severo –
não vai nos trazer problemas, heim?
– Eu prometo, senhora. Serei um bom menino.
Termina com um cartão manuscrito delas, onde está o
horário, o local e o dia do encontro.
Poler observa de longe, em silêncio.
Apenas no dia seguinte, após o café da manhã é que
vai perguntá-lo em tom de reprimenda:
– Por que queres te meter com isso agora? És uma
criança, Andy!
– Mas, Ian, eu preciso de respostas! Eu quero saber
por que aquilo aconteceu comigo! É importante para mim!
– Por que com elas, se conheceste tantos
feiticeiros aqui?
– Eles nem olham na minha cara… – fala emburrado –
Além do mais, uma delas se parece com a minha avó lá de Ecklacia. – confessa
seu lado infantil, roubando um sorriso de Poler.
Ian tem vontade de continuar a indagar, mas acaba
soltando uma gargalhada que deixa Andy desconcertado, mas que acaba rindo
também.
O Conselheiro chama-o:
– Vem. Já que és moço o suficiente para aprenderes
magia, acho que também deves aprender a te defender.
Poler leva o garoto para fora, dão uma boa
caminhada pela grama verde até chegarem a outro setor, onde um pequeno ginásio
de paredes vazadas permite distante visão do haras. Do lado oposto, o lago. Uma
brisa fresca traz o cheiro do bosque para onde vários guardas batem espadas de
madeira, concentrados. Ao verem Ian Poler e o jovem príncipe entrarem, porém,
param o que faziam e os reverenciam de forma rápida. O Conselheiro responde
gentilmente, indo até uma saleta para pegar dois protetores de peito e duas
espadas de madeira.
Joga uma para Andy que exclama empolgado:
– Uau! Então eu vou lutar?
– Sim, garoto, quanto mais cedo melhor.
Seus olhos brilham. Andy ensaia contra o ar,
golpeando o adversário invisível com entusiasmo.
Entediado, Poler cruza os braços:
– Muito bem, Vossa Alteza Real. Contra ninguém é
fácil. Agora vamos aprender como fazer caso lutes com alguém.
Andy olha para ele e torce a boca, irritado: quando
Poler o chama de Alteza, é porque está chamando-o de bobo. De “Vossa Alteza
Real”, praticamente de palerma! Andy guarda a espada de madeira na bainha
imaginária e segue-o.
O Conselheiro se posiciona num campo bem aberto,
flexiona os joelhos, deixa a espada a trinta graus à lateral de seu corpo e
avisa a Andy:
– Primeiro vais me imitar, depois vamos praticar
juntos, depois um contra o outro. Mas não será tudo hoje.
Incrédulo, o principezinho desdenha:
– E desde quando sabe lutar? Não foi formado em
Diplomacia?
– Fui, logicamente. É pré-requisito para exercer a
função de Oficial do Reino. Antes, porém, como muitos, lutei no exército. Fui
para duas batalhas, lutei entre os soldados. Creio que tenha sido competente,
visto que não morri.
– E matou?
Responde tranquilo, como responderia se o perguntassem
se lembrou-se de escovar os dentes:
– Matei.
– Você matou?! – repete chocada a criança.
– Ora, por que esse espanto?
– Nossa, Poler, que horror! – balança a cabeça com
um olhar reprovador.
Poler bate o lado de sua espada falsa de leve em
sua orelha. Alerta:
– Ou tu me imitas agora, ou vou dobrar tua lição à
tarde.
Andy trata de arrumar seu protetor de peito e
flexionar os joelhos logo. O posicionamento certo, os movimentos certos, tudo
vai sendo imitado. Andy não resiste a voltar ao assunto:
– Quando lutou na armada?
– Ah, eu era bem jovem… – rememora, num ar
distante.
– E não é mais? – estranha Andy.
– Não muito.
– Quantos anos você tem?
– Bem – Poler sente-se um pouco desconfortável e
resolve enrolar – digamos que eu passei dos trinta… e cinco… dos trinta e sete,
vai.
– Caramba! – inocentemente, com os olhos verdes bem
abertos, Andy escancara – É quase o triplo da minha idade!
– É, garoto, quase. – lamenta o Conselheiro – Mas
não será para sempre! Agora em guarda!
Um comentário:
Quero só ver até onde a senhorita nos levará com esta saga. Parabéns, teu trabalho é ótimo!
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