terça-feira, 5 de novembro de 2013

Capítulo 9 - "O Ouro"

 

Andy acorda assustado. Todos os seus sonhos durante a viagem foram trágicos. Três longas noites apenas de pesadelos. Não era culpa da carruagem em que dormia, que, aliás, é muito melhor que sua cama. Andy acha que deve ser medo de ter que começar a viver de um jeito diferente agora.

O porvir é tão misterioso. Não consegue imaginar o que aqueles homens elegantemente uniformizados têm a ver com seu pai, ou com ele mesmo, e nem por que o tratam com tanta deferência.
Que exagero... É um príncipe, e daí?
Por que não o deixam picar um legume para ajudar no jantar? Por que aquela carruagem luxuosa tinha sido trazida só para ele enquanto os mais velhos dormiam toda noite em tendas tão desconfortáveis? Mais de uma vez ele ofereceu trocar de lugar com alguém de sua escolta, mas em resposta ouvia risos. Deviam pensar de onde ele tirou essa ideia…
Não entendia também por que andavam armados de longos floretes e olhavam com tanta insegurança para a mata sempre que os campos abertos davam lugar a trilhas sinuosas ladeando barrancos selvagens. “É só natureza”, pensava Andy, enquanto suspirava procurando novos pássaros, tentando encontrar todas as diferenças entre Kophand e Mourões, que, a princípio, lhe pareceram poucas. 
Foi Ian Poler que anunciou o limite entre os dois Reinos, senão ele nem perceberia. O aldeão nunca tinha ido tão longe. Muito mais longe do que poderia imaginar, ou até mesmo desejar. Às vezes segurava lágrimas de desespero. Seu mundo… seu adorado mundo ficava para trás.
Durante o dia o caminho seguia quase ininterrupto, exceto pelas refeições e algum descanso para os cavalos. Os Oficiais aldéus tinham pressa. Alternavam os cavalos da carruagem com os que serviam de montaria, alternava o Oficial que servia de cocheiro… Só não alternavam a maneira polida e formal com que tratavam o garoto, o que o deixava um pouco incomodado. Tinha vezes que desistia de conversar e ficava só olhando a janela da carruagem, observando as paisagens mudarem de configuração devagar.

Agora a noite ainda é profunda, mas Andy não quer voltar a dormir: está farto de seus pesadelos. Ouve as cigarras gritarem ao redor daquela gaiola de ouro que insistem que habite durante a viagem toda –“para sua segurança”, repetiam – e entorta a boca pensando nos bosques de Ecklacia.
– Eu deveria fugir enquanto ainda é tempo… – suspira, olhando o teto ornamentado.
Não que agora enxergasse o teto, mas já tinha olhado tanto para ele que o via de memória. Os olhos verdes bem abertos, as pupilas dilatadas tentando captar todas as formas possíveis ao redor enquanto o canto das cigarras o fazia quase ter que tapar os ouvidos. Era um contraste interessante, tanto som e tão pouca imagem.
Andy pensa no pai. Pensa no pai percorrendo sozinho essas estradas, fazendo o caminho contrário ao que faz agora.
–Por que, pai? – sussurra – Eu nunca vou saber? Ou vou ter que descobrir da pior maneira o que viu de tão ruim no lugar onde nasceu?
Criiiiiiii!!!!
Dá um pulo da cama tendo o grito ensurdecedor de uma cigarra bem perto do seu travesseiro:
– Ah! – cai no chão de madeira, ruidosamente, mas logo se levanta.
Apoiando os cotovelos no acolchoado, ele olha para o pequeno inseto:
–V-você quer falar comigo? – pergunta, um tanto carente – Sabe, não precisa ser assim.
Para sua surpresa – ou nem tanta surpresa assim – a cigarra se cala. O que se torna um problema, pois quieta ela se torna “invisível”. Andy volta a sentar, coloca a mão no peito, respeitoso:
– É um prazer recebê-lo aqui. Meu nome é Andy, eu sou de Ecklacia. Estão me levando para Elderwood, dizendo que eu sou príncipe… hunf– dá de ombros de um jeito um pouco irônico – Mas para ser sincero, eu não tenho certeza. – o garoto sorri – Me desculpe por não estar falando rimado, é que eu acabei de acordar, e…
Groooooooowwwlll!
Um longo rugido gutural soa do lado de fora o interrompendo, fazendo tudo tremer, disparando o coração do garoto. Acorda o acampamento inteiro de uma só vez. Outro som grave coberto de pequenos estalos sucede aquele, seguido de uma radiante luz quente que ilumina tudo por um instante, como um amanhecer repentino no meio da mata.
Andy pula para fora da carruagem, o peito transbordando de emoção:
– Não pode ser… – um sorriso grande aparece involuntário em seu rosto.
"Mas eu não deveria estar com medo?"
Não há mais som ou fogo quando olha para cima e as copas das árvores são nada além de uma sombra salpicada. Mas ainda consegue ver um vulto negro cheirando a carvão atravessar o espaço, cedendo lugar a uma ventania violenta que arrasta tudo por alguns instantes, fazendo o garoto quase perder o equilíbrio e ser atacado por uma chuva de folhas. O som do bater das asas da fera ainda pode ser ouvido e mais um rugido potente, agora de longe: como podia voar tão rápido?
A fogueira acesa no meio do acampamento ameaçara apagar, mas logo retornou ainda mais potente que antes. Só então Andy pode observar um pálido Oficial que fazia a vigília sentado próximo a ela, paralisado. Assim que este vê os outros que também tinham acordado e o observavam perplexos e confusos enquanto toda a mata fazia silêncio, ele constata coçando a nuca:
– É. Acho que chegamos oficialmente em Rohrand.

Ah, Rohrand, finalmente!
A longa escarpa montanhosa que alguns exóticos humanos escolheram para morar. Mal amanhece e a caravana já começa a levantar o acampamento para enfrentar a parte mais difícil da viagem.
Poler vai contando ao jovem príncipe tudo sobre o lugar. Governado pelo rei Balzac há mais de quinze anos, monarca com boa relação com o reino de Elderwood, Rohrand é famoso pelas montanhas estreitas e altíssimas, por seus bons tecidos, pelos incontáveis rios e cachoeiras sem fim. Era de se entender, num terreno tão acidentado. Andy nunca imaginou ver tantas pontes na vida. Por todo o caminho, sem parar. Pontes de pedra sobre abismos, pontes de madeira sobre rios, pontes de bambu sobre… está bem, nessas ele não tem coragem de olhar para baixo. E pássaros, muitos, um mais lindo que o outro.
– Em Rohrand tem muitos dragões, Poler? – pergunta curioso.
– É difícil dizer, Alteza. Dragões costumam ser discretos…
E Poler não parecia gostar muito deles, quer dizer, não como companheiros de viagem, pelo menos.
Andy olha o topo de todas aquelas montanhas. As lendas diziam que cavernas em altos cumes são o lar preferido dos Dragões da Terra e isso fazia de Rohrand praticamente uma metrópole para eles, não? Fica imaginando, sonhador, apenas atento para ver se algum dava o ar da graça durante o dia. Para sua frustração, porém, mais nenhum apareceu.

O lugar era mesmo arrebatador. O jeito que a pessoas se vestiam era tão interessante… Algumas ruidosas feiras concorriam aos sons dos caudalosos rios sendo montadas em suas margens. Exibiam-se coloridas, repletas de tapetes expondo diversos e tentadores produtos como temperos, frutas, peixes, joias rústicas, perfumes e instrumentos musicais.
As mulheres se adornavam de penas e ouro, os cabelos tão longos e volumosos deixavam o jovem ecklaciano encantado. Os homens se vestiam de cores e belos colares. Seus olhos, se se prestasse atenção, pareciam delineados com hena. Era bonito de ver. Ele ali, vestido de trapos, ao lado de elegantes Oficiais tão formais em meio a um povo assim tão exuberante, era mesmo algo a se estranhar.
Andy tinha sim ganhado roupas, mas olhou para elas e não gostou de nada. Como a viagem era longa, ainda lhe era permitido vestir o que lhe fosse mais confortável. Tomava banho nos rios quando os Oficiais ouviam suas súplicas para parar em uma ou outra cachoeira mais irresistível, mas não estavam lá a passeio. Os Oficiais aldéus tinham pressa. E, mesmo sem pararem muito, lá se foram mais quatro dias.

***

Em Ecklacia não se falava de outra coisa senão sobre o passado de Jason. Era demais para a imaginação dos simples aldeões. Algo quase inconcebível.
Enquanto os mais jovens enchiam os filhos do casal de perguntas e teorias fantásticas sobre reinos e dinastias, a Cedes, Felix, Andrew e Evelyn cabiam as questões sobre o ouro.
– É a herança que meu marido deixou aos seus filhos. – respondia Cedes.
– É um direito de todos. – contrariava Evelyn.
Felix, que estava prestes a casar, se doía ao pensar em dividir aquilo tudo. Andrew então, se pegava pensando se poderia fugir com sua parte por aí. O impasse era grande e estava quase dividindo a família.

Evelyn não quer se dobrar ao egoísmo, ela que lutou a vida inteira contra o próprio:
– Nós nunca precisamos dessa coisa! Por que precisaríamos dela agora? Não vê que isso é uma cilada que colocaram no nosso caminho? Papai fugia disso! Não percebem? Será que não aprenderam nada com ele?
– É nosso direito, Evelyn! – retruca Andrew.
– Se nosso pai quisesse mesmo deixar ouro para nós não teria escondido sua origem até o final dos seus dias! Quem trouxe isso para cá foi o pai dele, o pai que ele renegou!
Os dois irmãos mais velhos a olham com muita raiva, uma raiva que ela nunca viu antes. Cedes suspira. Nessas horas queria poder olhar nos olhos de Jason e perguntar, afinal, o que passou em sua cabeça todos esses anos? O que ele pretendia com seu segredo? Mas não tinha tempo para meditar com seus filhos quase se pegando em sua frente. Cedes levanta as mãos calejadas:
– Vocês, esperem. Não vou mexer no que for de vocês. Vamos fazer a partilha justa, o que acham? Então cada um decide como vai gastar.
Evelyn a olha com os lábios comprimidos, fecha os punhos, mas é obrigada a concordar.
– A Senhora é que decide, minha mãe. Vocês já sabem o que vou fazer com a minha parte. - e se retira.
No quarto ficam os rapazes com sua mãe. Entreolhando-se cumplicemente Felix e Andrew resolvem virar o baú de cabeça para baixo e dividir as pecinhas de ouro em dez partes iguais. Nunca tinham dividido nada entre dez. Era estranho pensar que Andy não estava mais lá.
– Imaginam quanto ouro aquele pirralho vai ter, só para ele… – suspira Andrew, de um jeito venenoso.
Felix e Cedes o ignoram. Dividem as partes em sacos de pano, amarrando as bordas.
– Chame seus irmãos, Felix. – pede a mãe.
E ele vai. Na praça, cercada pelo falatório das vizinhas, Barbara o fita com os olhos compridos. Talvez não assumisse, mas lhe brilhava a ideia de que teria algum direito aos bens da Realeza. Mas Felix suspira frustrado por não poder oferecer a ela um pouco mais que um décimo daquilo tudo. 
Quando encontra seus irmãos, estranha o fato de estarem todos juntos, sentados junto às raízes da mais bela cerejeira de Ecklacia. Percebe que todos estavam aos pés de Evelyn que o olha um pouco desafiadora quando ele chega. O primogênito anuncia, com má vontade.
– Venham. A mãe quer dividir o ouro de vocês.
– Não precisa, Felix. – diz Samara num sorriso – Não vamos gastá-lo agora.
– Vamos guardar para alguma necessidade, algum dia. – completa Heidi.
– Quando tivermos a lista de tudo que a aldeia precisa, eu vou guiar a carroça, como um caixeiro viajante! – fala empolgado o jovem Joshua.
Evelyn não fala nada, mas sorri. Felix entorta a boca:
– Fez a cabeça deles, não fez?
A garota de cabelo cor de cobre dá de ombros:
– Ensinar o correto e passar adiante os ensinamentos do nosso pai é fazer a cabeça dos nossos irmãos, Felix? Se for assim, eu fiz.
Ele bufa e sai pisando forte com seus pés descalços. Agora ele e Andrew seriam os únicos egoístas da aldeia? Assim todos falariam mal deles... 
O que é melhor: um punhado de ouro nas mãos ou ser bem quisto pelos vizinhos com quem conviveria o resto de sua vida? Os vizinhos que sempre o ajudaram nos seus dias mais difíceis. Ah, maldita consciência! Ah, que mundo injusto!


3 comentários:

Unknown disse...

PELO ANDAR DA CARRUAGEM, CADA CAPITULO DESTE LIVRO LEVA-NOS A CRER QUE ESTAMOS DIANTE DE UM BEST SELLER. PENSO ATÉ QUE PODERÁ SE TRANSFORMAR NUM BELÍSSIMO FILME, QUEM SABE ATÉ UMA SAGA.
PARABÉNS MA,FICO CONTANDO OS MINUTOS DE UMA NOVA POSTAGEM TUA, ESTOU ADORANDO MESMO.
SE VOCÊ AINDA NÃO TIVER UMA EDITORA PARA ESTE LIVRO, TENHO UMA PRONTINHA PARA VOCÊ AQUI EM SÃO PAULO.

ABRAÇOS

VANDA MARIA M. MATIAZI



Unknown disse...

Mais, mais, mais , por favor!!!!

Marcel disse...

Nossa que triste, ele mal pode se despedir...to vendo que esse menino vai mudar bastante no reino. Sorte pra ele!ahh Adorei a parte do ouro, muito boa!