Jason sente aquele aperto agudo no peito outra vez. E, como das outras
vezes, sofre em silêncio. Comprime a expressão e puxa o ar, cravando a enxada
na terra num movimento rápido e certeiro que a deixa firme o suficiente para
servi-lo de esteio. É uma sensação angustiante e cada vez mais frequente, como
se seu coração fosse comprimido por uma mão invisível. Talvez esteja
trabalhando demais.
O som das ferramentas atacando o solo prossegue ao seu redor, levantando
o cheiro confortante da terra úmida.
– Tudo bem com você, Jason? – pergunta Amin, seu vizinho mais próximo, o
observando atento há alguns metros dele, o rosto marcado com marrom por ter
limpado várias vezes o suor da testa com a mão cheia de terra.
– Tudo. – sorri simpático, apesar de seu cenho continuar tenso
denunciando seu desconforto – Só preciso descansar alguns minutos.
Amin ergue as sobrancelhas graúdas, o olhar examinador fixa sobre o
vizinho por um instante, mas logo volta despreocupadamente ao trabalho:
– Só não vou te mandar ir para casa porque corre o risco de ficar ainda
mais cansado! – zomba o senhor bem mais robusto que Jason, barba mais longa,
pele castigada pelo sol e cabelos curtos e desgrenhados com duas grandes
entradas de calvície a delineá-los.
Jason sorri, Amin estava certo. Tem criança pequena em casa, uma linda
garotinha de cachinhos loiros chamada Heidi. Com dois anos já está aprendendo a
correr, deixando todos ao redor alertas. Isso não seria problema se não fossem
os dez irmãos mais velhos dela. São onze bocas o chamando de pai noite e
dia! Ah, mas como ele ama cada uma delas…
Alguns de seus rebentos já são mais moços e estão na lavoura junto do
pai. Jason os mantém sob seu olhar atento e cauteloso, observando se estão
mesmo colaborando no trabalho ou, ao invés disso, atirando bolas de argila
vermelha uns nos outros. Não que não aprecie sua diversão, apenas não é justo
com os que trabalhariam no lugar deles.
Um pai precisa educar os filhos, fazer deles homens respeitosos e bons.
Seus dois mais velhos, Felix e Andrew, são os que já o acompanham na função. A
maioria da prole ainda não tem força para levantar a enxada ou manejar os
facões e as foices, mas certamente está ansiosa por isso.
Os Mideline gostam de estar juntos, disso ninguém pode duvidar.
Jason puxa os cabelos para trás, as mãos saem ensopadas de seu suor e
nem passar na camisa adianta, pois a mesma também chega a grudar em sua pele
febril. Cada brisa que sopra é muito bem-vinda. O sol ainda vai demorar a baixar.
O pequeno grupo de roceiros, formado por homens e mulheres, se espalha
devagar sobre a área onde a última safra foi colhida. Prepara o solo
gentilmente para a próxima remessa de sementes. Tinha sido uma boa colheita,
diferente daquela do ano passado nessa mesma estação, quando Jason teve o
desprazer de acompanhar seus filhos passando fome. Precisou, juntos dos
vizinhos, se embrenhar na mata atrás de frutos comestíveis, cogumelos, folhas e
caules tenros. Porém, em determinado momento, a única saída foi caçar. Odeia
caçar, todos ali odeiam. Os aldeões evitam a todo custo lidar com a morte, pois
acreditam que sangue atrai sangue e ninguém o quer por lá.
A humilde aldeia de Ecklacia pertence ao Reino de Mourões, região com
amplos campos de terras comunais, onde se cultiva sobretudo o trigo, o milho, a
aveia e os girassóis. É envolvida por uma cadeia de imponentes montanhas que
forma o imenso vale onde esses campos florescem. Por vezes a aldeia é castigada
pela chuva e a lavoura que sustenta seus habitantes é perdida. Mesmo assim,
basta observar em volta a imensidão daquele céu magnífico, respirar fundo e
sentir o frescor daquela brisa, que toda intempérie é perdoada.
Ecklacia é um pedaço do paraíso, tão isolado dentro de um reino já tão
isolado, que só podia ter sido fundada por alguém em fuga do mundo. Em fuga do
mundo, mas indo se encontrar com a Terra, afinal, um não é sempre sinônimo do
outro.
Francis, quarto filho de Jason Mideline, conduz um dos burricos
castanhos que segue o grupo, carregado de dois sacos de estopa levando sementes
previamente brotadas. Sua irmã Evelyn, no alto de seus treze anos, vai
espalhando a carga com cuidado sobre o solo, tão silenciosa e concentrada que
chega a parecer melancólica. Guarda para si as canções que soam em seu pensamento,
duas tranças bem longas cor de cobre balançam suavemente em suas costas magras.
Seu vestido tão simples não está coberto de suor como o dos adultos. Não lhe
anima muito a ideia de ter que pegar a enxada quando for mais velha.
Será esse um destino inescapável para ela? Ninguém pode escolher simplesmente
lançar as sementes pelo resto da vida?
Olha para trás e vê outras crianças que gritam e correm, brincando de
espantar as aves que pretendem se banquetear dos pequenos brotos:
– São os espantalhos mais animados que existem! – riem os adultos.
Não saberia dizer quem faz mais alvoroço: as aves em debandada ou os
pequenos e descalços bagunceiros. Mais dois dos seus irmãos estão entre eles:
Dennis e Lenora. Os mais jovens estão na aldeia aprendendo a ler. Até chegarem
aos sete anos é só isso que precisam – e podem – fazer.
Existem poucas profissões em Ecklacia: os que vão para o campo plantar e
colher; os que fazem as ferramentas para eles; os que fazem a manutenção do
pequeno rebanho de ovinos e caprinos, controlando a natalidade, afastando
predadores e parasitas dos animais; os que cuidam das pessoas, principalmente
crianças que se acidentam e das doenças dos idosos; e, por fim, os que ensinam.
Quem ensina deve saber de tudo um pouco. Não que isso seja uma obrigação, mas é
o ideal.
Os professores são os mais respeitados dos aldeões, geralmente já
passaram por muitas das outras profissões, boa parte deles são idosos. Salário?
Não, não há salário. Um aldeão deve cuidar do outro e nada faltará a ninguém,
como se fossem parte de uma imensa família, aliás, raras ali não são imensas.
Afinal, são pouco mais de cento e cinquenta habitantes e apenas cinco
sobrenomes: Abhann, Caol, Tristian, Moya e Jenniz. E agora Mideline, que
povoava significativamente a aldeia nessa sua primeira geração.
Quando os representantes do Reino aparecem para cobrar impostos, saem
com a carruagem carregada de milho e enfeitada de girassóis. Pouca gente ali
conheceu outra forma de viver. Dos que chegaram de fora, quase ninguém saiu.
Estar isolado não parece nada mal quando os poucos que o rodeiam
verdadeiramente o acolhem, e é assim que Jason se sente: acolhido.
Isso enche seu coração de paz e até a dor que o tomou vai passando
devagar, enquanto ouve os gritinhos felizes de Lenora e Dennis e mira os sábios
olhos de sua jovem Evelyn que sorri timidamente em resposta. Olha para todos
que trouxe ao mundo e até lança um olhar às casas da aldeia onde estão seus
outros rebentos. Ama-os a todos em silêncio e certamente é amado por cada um
deles, pois é natural que todos colham o que plantam nessa vida.
***
É noite. O clima é ameno, o som dos sapos e cigarras soa insistente do
lado de fora. Evelyn seca a louça e entrega a Lenora que leva com jeito cada
peça guardando-as no armário ao lado. Duas mocinhas ignorando os
barulhentos irmãos que fazem um notável alvoroço na sala.
Jason e sua esposa, Cedes, separavam grãos sobre a mesa de madeira para
fazerem o cozido do jantar. É uma mesa muito rústica, uma peça única retirada
da imensa árvore fulminada por um raio na noite em que Jason conheceu aquela
com quem viria a se casar. Uma linda e assustadora tempestade elétrica que
obrigou a família Jenniz a abrigar o solitário Mideline. Uma conversa longa com
olhares ainda mais longos.
Cedes ainda tem os mesmos olhos verdes claros e Jason ainda sente sobre
si aquele olhar. Apesar de seus corpos terem mudado muito depois de tantos
frutos dessa conversa na tempestade, toda vez que um raio cai em Ecklacia, o
coração dos dois palpita de lembranças. A noite de hoje, porém, é tranquila, ao
contrário dos jovens que gritam e gargalham na modesta sala de paredes de
barro.
Jason e Cedes ficam atentos ao tom da brincadeira, porém poucas vezes
sentem necessidade de interferir: tantas crianças juntas conseguem resolver a
maior parte das próprias confusões sozinhas. Ou assim esperam seus cansados
pais.
Os jovens se entretinham com um enorme besouro esverdeado que tinha
entrado pela janela há alguns minutos. Era realmente grande, de costas altas,
rígido, pesado e forte. Até os cães o respeitavam, cheirando de longe, mantendo
as pernas traseiras a certa distância e se aproximando apenas com as
dianteiras, quase deitando no chão.
Ah, mas não as crianças: essas se esbaldam com a presença e mansuetude
do inseto. Enquanto espantavam as gêmeas levando-o para perto do rosto delas,
causando gritos e gargalhadas, o cutucavam querendo forçá-lo a voar.
Andy, o sétimo filho, então com seis anos, muito parecido com Jason, mas
ostentando imensos olhos verde-escuros como a própria casca do precioso
besouro, reclama aflito:
– Parem com isso! Vocês estão magoando ele.
Seus irmãos se entreolham até se distraindo um pouco do alvo:
– Magoando? – pergunta Samara, uma das gêmeas.
– Ele quis dizer machucando! – corrige Lenora, da cozinha.
– Não, eu quis dizer magoando
mesmo! – diz Andy, emburrado.
– Não se magoa um besouro, Andy! – ri Felix achando estar sendo
didático.
– Como você sabe? Acham que ele não tem sentimentos só porque ele não
fala?
Todos se calam por um instante e até pensam nessa possibilidade.
As gêmeas, apenas um ano mais novas que ele, até esticam os olhos para os pais,
numa tentativa de saber o que eles diriam sobre aquilo. Felix não coloca tanta
consideração no questionamento do irmão:
– Papo furado.
– Nunca vamos saber. – Andrew dá de ombros segurando o besouro, apesar
disso, com um pouco mais de cuidado.
– Nenhum inseto fala. – diz Evelyn, num tom tão categórico que soa
convencido, enxugando o último prato.
Então Andy abre um grande sorriso, com os olhos brilhantes:
– Fala sim! Uma vez conversei com um enxame de vagalumes!
Todos o olham torto, em caretas muito parecidas entre si. Da cozinha,
Jason abre mais os olhos castanhos, atento e surpreso.
– Andy, mentir é feio! – reprova Paulinne, a outra gêmea, zangada.
– Ele está só sendo imaginativo... – corrige novamente Lenora.
– Mas é verdade! – ele insiste – Eles tinham vozes fininhas e...
Gargalham ruidosamente, sem deixar o garoto completar. O imenso besouro
abre finalmente as asas e voa num zumbido tão forte que chega a fazer coçar as
orelhas, causando correria e gritos das pequenas gêmeas morenas de cabelos
cacheados, fazendo-as tropeçarem nos cães que se assustam indo parar embaixo da
mesa. Jason, como de costume, apenas observa. Engole seco e volta a separar os
grãos. Cedes observa o marido:
– O que foi?
– Não foi nada. – levanta os olhos castanhos num sorriso ensaiado e
doce, tirando também um muito singelo dos lábios da esposa.
Resolve dispersar a turba da sala. Levanta e vai botando todos para
trabalhar: separar a panela, pegar mais água no poço, trazer lenha, acendê-la
sob o forno… Serviço não falta. Ao ver todos dispersos, até mesmo a pequena
Heidi que segue um, depois outro, depois outro sem saber direito para onde ir,
Jason se aproxima de Andy que o olha com certo receio: será que pensa que ele
mentiu? Sabe como o pai reprova mentiras.
– Quando conversou com os vagalumes, Andy? – seu tom de voz é moderado,
o assunto não interessava a mais ninguém. Abaixa-se na frente do menino olhando
bem em seus olhos – Foi sozinho até o bosque de noite?
Andy comprime o cenho e baixa o rosto, mas não os olhos:
– Eu não entrei na mata, eu só… cheguei perto.
– Andy! – fala decepcionado e severo e isso faz seu filho se encolher.
Jason não é violento. Criar onze filhos sem violência é mesmo algo a se vangloriar.
Bastava seu olhar se comprimir e sua voz mudar de tom e todos ali baixavam a
cabeça, como Andy faz agora. Ele continua:
– Não ouve as histórias? Não sabe os perigos que a mata esconde? As
feras que caçam à noite? Esqueceu-se de tudo isso, Andy?
– As luzes eram bonitas, papai, me desculpe…
Então o imenso besouro pousa com seu peso notável sobre o ombro de Jason
que vira os olhos castanhos para o inseto. Andy repara naquilo, curioso. Seu
pai lhe lança mais uma vez o olhar severo:
– Você, vá ajudar sua mãe.
Andy obedece. Jason se ergue e sai da simples casa, vendo, com o
resquício tímido da luz do dia, Felix trazendo um punhado de lenha sobre o
ombro: talvez estivesse pesando menos que o bendito besouro. O rapaz conversa
com Andrew em tom sarcástico sobre os sentimentos dos insetos.
Em passos rápidos Jason segue até o bosque, onde os vagalumes já
começavam a pontilhar o caminho de luz.
O zumbido do besouro decolando de seu ombro faz seu ouvido doer. O ser
tão vistoso, assim que toma o voo já deixa um rastro de poeira brilhante atrás
de si. Jason não se impressiona. Com o cenho tenso, fala ríspido:
– Vocês! Parem com isso! Chega! – olha ao redor enquanto os vagalumes
começam a cercá-lo – Não podem atraí-los, não podem brincar com sua inocência!
Eles são jovens demais… – diz num sussurro grave – Deixem meus filhos em paz,
me ouviram? Ainda não é o momento.
Risadinhas agudas se espalham entre as árvores, Jason não gosta. O que
deu em sua cabeça? Dar ordem às fadas? Dizer “não façam” é o mesmo que dizer “façam”.
As mocinhas são tão orgulhosas…
– Por favor, eu peço. Ainda é cedo demais.– repete.
O besouro pousa num galho ao seu lado e o mesmo enverga com seu peso.
Jason vê o inseto se contorcer como uma dobradura de papel, emitindo radiações
suaves de luz enquanto toma, no meio de sua majestosa carapaça transformada
agora em formosa armadura brilhante, um pequenino rosto sem nariz. Olhinhos
negros e cansados, como de uma tartaruga fitam o aldeão enquanto sua pele
recebe a luz esverdeada do Elemental:
– Tu que és mortal de nada sabes…
– diz a exótica criatura – e o mistério
do tempo, a ti, não cabe. Cuida do pão da tua mesa… que o resto da vida será
surpresa!
Sorri bem aberto com seus dentes quase invisíveis de tão pequenos e uma
brisa sopra num soco, levando seu pó cintilante embora, enquanto um coro de
risadas de fadas se espalha e desaparece. Jason olha ao redor novamente e agora
está só: apenas os grilos e sapos se manifestam, escandalosamente.
Jason tem medo. Conhece bem demais desse mundo para não temer que ele
atraia irremediavelmente suas crianças arteiras. A vida que preparava aos
filhos seria sempre dura, de trabalho incansável porém digno, até seu último
dia. As fadas ofereceriam a eles o deleite da noite, a diversão embriagada de
uma vida fácil e prazerosa, mas que consome
o tempo ao seu redor, vertiginosamente.
Se um filho seu entrar numa roda de fadas, pode ser que volte apenas
quando Ecklacia for uma ruína devorada pela mata, dali a centenas, milhares de
anos! Pode voltar só quando tudo que conhecia não mais existir.
Mas pode apenas, talvez, receber a bênção dos Elementais para uma vida
longa e plena... como saber?
Por o terem escolhido e o seguirem desde sempre, podem lhe levar um
filho, ou apenas mais uma chave ou um botão. Jamais saberá.
Volta para casa com os pés descalços sentindo a grama fria. O cheiro do
cozido que Cedes preparava o distrai de suas indagações. Ah, como odeia
surpresas de fadas…
3 comentários:
Agora que a história começou de verdade posso dizer que é um cenário bem interessante e diferente, e me deixou curioso sobre como vai continuar ^^
Gzus... quanto filho xD!
Gostei bastante do texto ^^. A sua forma de escrever é bem limpa, isso ajuda muito a pessoa ficar presa na leitura. Consegui imaginar bem as cenas ^^.
Parabéns pelo texto ^^/
Pequena observação: Detesto captcha xD! Mas não deixarei de comentar por causa disso hahahahaha
Caramba... Quantas crianças rs
Eu já me identifiquei com uma, vou guardar em segredo até saber um pouco mais sobre ela rs.
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