domingo, 21 de dezembro de 2014

Introdução ao cenário Eliano

Introdução ao cenário Eliano


Devastada pela força da Natureza, devorada pela desesperança no amanhã, a Humanidade vivera séculos de desespero. 
Trituradas pela fúria do céu, varridas pela violência do mar, chacoalhadas pela perturbação da terra, as cidades cediam, uma a uma, esmagando a população a quem deveriam proteger.
Poucos anos bastaram para que a Humanidade se acostumasse a observar com impotência tudo de belo que já havia construído desaparecendo diante de si, sendo reduzido a escombros, e a ver famílias serem retalhadas por aço e concreto, por ventos e águas. 
Os alimentos escassos naqueles tempos de caos acabaram por se tornar, juntamente com a água potável, motivo de guerras, desentendimentos e ocupações entre nações vizinhas. E assim, quantos se foram por fome, sede e violência.
Sempre se considerando mais merecedoras da vida, nações mais fortes esmagavam as mais fracas a quem deveriam ajudar. Não havia lei que reinasse acima da lei da sobrevivência. O Homem regrediu ao seu estado mais primário durante anos incontáveis de desespero. 
Os que eram vitimados pelas catástrofes eram considerados até venturosos, pois a Terra passara de lar a prisão e cada dia nela vivido se tornara uma tortura, uma luta contra a inanição e contra desesperados saqueadores. 

Os ricos matando os pobres, primeiro das nações vizinhas, depois de suas próprias, foram enfrentando a consequência de seus atos. Não bastava eliminar os concorrentes ao pão: era necessário forjar agora o próprio pão. Nem eles, imunes a tudo, conseguiriam evitar sua própria decadência. O supérfluo nunca foi tão supérfluo, a palavra “necessidade” nunca teve antes seu significado tão nítido. Nada mais seria como antes, não, nem para os privilegiados.

Tantas mortes foram resultando, pouco a pouco, numa vida um pouco menos bruta para os poucos que ficaram. Apenas os corações se tornaram cada vez mais machucados. A antiga ambição que movia a Humanidade foi perdendo totalmente o seu sentido diante desse cenário de luto universal. 
As fábricas pararam, pois pouco havia o que vender; os carros pararam, pois poucas estradas havia para que circulassem; as guerras também, pois quem lutaria? Aos poucos, tudo parou.
Deu lugar a uma sociedade silenciosa, de alma ferida, onde pequenos agricultores só produziam para alimentar suas pequenas famílias, na paz que lhes era possível durante o tempo que pudessem viver em uma determinada região. Normalmente acabavam por se mudar em um tempo relativamente curto, quando novas catástrofes naturais se aproximavam. Quando a sobrevivência se tornou um fator de sorte, o dinheiro, apesar de ainda existir, tornou-se completamente secundário e muito difícil era lhe estipular valor. O ontem era lamentável, o amanhã, sempre incerto: o Homem aprendeu, como nunca, a viver seu hoje
Por revolta pelos tantos que se foram e medo dos que ficaram, as armas de fogo foram sumariamente proibidas, assim como tudo que pudesse voluntariamente ameaçar a vida, já tão frágil. Esta se tornou o principal, senão único, patrimônio a que todos deveriam ter direito desde então. 

A capacidade de adaptação do Homem foi admirável e logo as novas gerações não saberiam, senão por histórias, o lugar barulhento, poluído, superpopuloso, repleto de luzes artificiais que a Terra foi, e que não mais anoitecia nas antigas cidades. As funções biológicas humanas foram voltando ao normal: doenças graves que acompanhavam o fim dos tempos desapareceram. Tornaram a ser animais racionais, filhos de Deus e da Terra, mais serenos do que nunca, e aglomerados em aldeias, pois, apesar de tudo, ainda tinham medo da noite. 

A riqueza herdada do passado foi apenas o intelecto. Os novos homens naturais guardaram ideias da ciência, reminiscências dos maquinários, da biologia, da anatomia, da história, além dos erros e acertos da antiga humanidade. Traziam dentro de si a saudade e as cicatrizes de seu “poder”, daquilo que fazia a Humanidade se acreditar soberana sobre o planeta Terra, um de seus maiores erros, aliás. 

As aldeias passam a crescer, devagar, durante outros milênios que se seguem. A Natureza dá sinais de que conseguira se livrar de sua doença, causada por nós, e seu organismo começa a voltar ao normal.
Algumas terras voltam a aparecer por debaixo das águas e novas terras se revelam. Os mapas são inteiramente redesenhados e parecem chegar, enfim, à sua forma definitiva.
A Humanidade está mais segura quanto às intempéries, aumenta seu número, relaxa em seu temor, jamais em seu respeito.
A reaproximação com a Natureza traz consigo um conhecimento há milênios esquecido: a Magia. Religando-se à Terra, o Homem volta a falar sua língua, não a encarando como obstáculo e sim como extensão natural de sua vida.
Os Elementais, reconquistando seu espaço no planeta, começam a se mostrar mais presentes na vida dos humanos, concedendo-lhes conhecimentos sobre o domínio de algumas forças sobre a Terra, sobre o poder da Lua e sobre o clima. Seres que viveram os últimos milênios escondidos voltam a se revelar e conviver de forma relativamente pacífica com a Humanidade. 
Homens e mulheres adentram as matas e compactuam com a Natureza. Responsabilizam-se pela função de tornar nossa integração a ela ainda mais perfeita. Assumem-se como porta-vozes da Terra, tendo assim, para sempre, essa simbiose. A Natureza dá ao Homem o que precisa, mas este nunca quebrará o Pacto entre eles: União e Respeito. 

Tendo esse acordo firmado por pessoas em todos os cantos, assinado como compromisso real, uma nova prosperidade da Terra tem início e logo as aldeias tornam-se reinos. 
Os líderes são, em geral, magos coroados pela população com aval da Natureza, que são fielmente comprometidos em cumprir o Pacto e não permitir que ninguém o desrespeite. Depois desses primeiros escolhidos, o próximo governante viria de sua família, mais precisamente um neto seu: o sétimo filho de seu sétimo filho. E assim, novas dinastias se espalham pelo mundo, prometendo manter esse equilíbrio eternamente. 




Elion 


Em meio às transformações ocorridas na superfície da Terra durante os milênios anteriormente descritos, águas tomaram conta de grande parte dos Continentes por nós conhecidos. Terremotos redesenharam o mapa das terras emersas, guerras deformaram a Crosta. A população se locomoveu em pânico, faminta pela sobrevivência. Durante o incontável tempo assim decorrido, um novo Continente acabou por surgir, devagar, no centro do Mundo Antigo, mais exatamente em meio ao Oceano Atlântico. Vibrante, foi dotado de grandes matas e extensos descampados entremeados por frescos bosques e doces fontes de água límpida. 
Seu nome é Elion e logo a Humanidade teria vida próspera em seu seio majestoso. Tendo o formato semelhante a um coração humano, tornou-se o mais coeso espaço de terra emersa do planeta, favorecendo a formação de diversos reinos, espalhados sobre todo o território.
É sobre o cenário eliano que se passa nossa história. 

A Profecia 


No frescor da nova Terra, apogeu da paz e do equilíbrio entre os povos, feiticeiros de todos os reinos espalhados sobre Elion recebem um chamado, uma profecia, em meio às suas profundas meditações. Eram estas suas palavras: 

No coração do novo coração do mundo 
Nascerá de uma longeva dinastia 
Aquele que com denodo profundo 
Provar-nos-á o que é Magia 

É o sétimo depois do sétimo, 
É o que anuncia a renovação! 
É o Senhor de toda intempérie 
É o Escolhido pelo Furacão! 

Dominará os Céus com seus olhos, 
Com a boca dominará as Almas, 
As Leis, dominará com as mãos! 

Mas seu inflado coração dominará 
Todos os seus sentidos 
E por completo a sua razão… 

De pés no chão e olhar altivo, 
Jamais fugindo do dever, 
De terras distantes será nativo, 
Mas outra terra fará crescer 
Que antes dele não era muito 
E depois quase tudo ela há de ser. 

Jamais se viu, jamais se verá 
E nada parecido vai se conhecer: 
O seu poder pode dominar, 
Céu e Terra a seu bel-prazer. 

Como a água de um temporal 
Muita bonança ele vai trazer 
Mas devastará e espalhará o mal 
Se acaso a medida ele for perder. 

Ele traz consigo os bons ventos do progresso: 
Uma brisa de paz sobre toda nação, 
Mas pode arrastar tudo feito um vendaval funesto 
Pois é quem fora o Escolhido pelo Furacão. 

Enquanto a profecia se espalhava, muitos aguardavam com ansiedade e peito inflado de respeito e temor. Alguns torciam para que chegasse logo o Escolhido, outros para que não estivessem vivos para ver. 

De fato, esses profetas se foram: poucos vivos sabiam quem estava por vir. Todo aquele ruído foi se silenciando, ninguém mais dava atenção àquelas exageradas escrituras. Apenas um mago, um único mago, guardou aquelas palavras. 
Mergulhado em sua alquimia, enganou a morte por quase mil anos e não há prazo para que sua vida acabe. Dizem que fez pactos perniciosos e sua descomunal longevidade custou a vida de muitos outros feiticeiros e mortais. Sua fama atravessou todas as fronteiras e seu orgulho cresceu no mesmo sentido.
Esse bruxo insaciável não poderia dividir o planeta com alguém mais poderoso, não queria ser superado, nem por um instante. Sua curiosidade para conhecer o Escolhido pelo Furacão e sua inatingível força sobre os Céus, as Almas e as Leis deixava-o aflito e era tão grande sua vontade de vê-lo agir, quanto a de impedi-lo. 
Elaborou, sem pressa, uma armadilha para que nada o escapasse ao controle.

Via as gerações passando, devagar, sem alarde, mas com excitação. Quem poderia impedi-lo, afinal, quem vivo lembrar-se-ia daquela profecia ancestral?

terça-feira, 11 de março de 2014

Capítulo 26 - "As Bodas"

 

Não foi necessário ajuste algum no vestido da noiva: a mãe de Rose era exatamente do seu tamanho em sua idade precoce de casamento.
A Condessa Stella Harmand foi uma mulher radiante. Morrera aos trinta anos, no auge de sua beleza e luz. Ah, como Rose amava sua mãe. Perdidamente. Seu maior ressentimento com seu iludido pai é o fato dele nunca ter percebido que anjo maravilhoso lhe dera suas quatro filhas. Que mulher deslumbrante ele maltratava e esquecia. Ela, por sua vez, parecia que pertencia ao jardim, dançando com as crianças, suas flores preciosas, tão feliz longe dele, tão feliz! Rose acha que foi o desamor do pai que matou sua mãe. Ela acaricia o vestido em seu corpo, como se acariciasse sua genitora que lhe dera tanto amor, mas que partira tão rápido como um sonho bom.
Será feliz? Mais que sua mãe com seu pai certamente, não é muito difícil. Tem o amor e cuidado de dois homens. Seria medo de não ser amada por ninguém?
Seus cabelos são esticados, trançados, perfumados. Rose pede:
– Por favor, não prendam demais. Eu não gosto de parecer muito mulher.
– Como assim? – pergunta a criada.
– Eu ainda sou menina. Não vê?
Ninguém a enxerga?
As maquiadoras mal conseguem fazer seu trabalho: as lágrimas que caem de seus olhos borram a pintura a todo instante. Elas já começam até a perder a paciência.
É quando Lorence aparece no quarto, causando o alvoroço das criadas. Rose levanta-se depressa as acalmando:
– Esperem, senhoras, é meu amigo! Só quero ficar a sós com ele um minuto.
– Isso é absurdo! – reclama a cabeleireira.
– Três segundos! – implora a noiva, quase histérica.
Resmungando, as criadas os deixam por um instante. Rose abraça-o chorando. Lorence a afasta com delicadeza, mas fala firme:
– O que é isso? Essa não é a Rose que eu conheci: parece um bebê chorão. A mulher pela qual eu me apaixonei é forte, madura, sabe enfrentar os problemas de cabeça erguida! Eu nunca te vi chorando, Rose.
– Lorence – resmunga triste – Eu quero morrer…
– Mas que absurdo. – ele quase ri – Por quê?
– Eu te amo.
– Eu te disse que isso não mudará nada, não disse? Ajude-me a me tornar um nobre para que um dia possamos nos casar. Faça isso por mim: por nós! Você é tão jovem, Rose, teremos tempo de fazer uma família um dia. Não seja tão ansiosa! Não perca a cabeça. – dá-lhe uma pausa – Você está linda, sabia?
Escapa um sorriso tímido de seu rosto molhado. Lorence continua:
– Pena estar toda borrada. Pare de chorar, vai. Comporte-se. – enxuga suas lágrimas – Acabou faz tempo nossos três segundos. Vão começar a desconfiar dessa demora. – dá um leve beijo em sua boca e some dali.
As criadas voltam com expressões desconfiadas. Ela enxuga o resto das lágrimas e engole sua tristeza, empurrando-a para o fundo do peito. Senta em sua cadeira devagar, com o olhar perdido, sem expressão. Dá a mão para fazerem suas unhas, enquanto as maquiadoras refazem sua maquiagem.

Andy coloca a casaca cinza, abotoa os últimos botões. Olha para os sapatos ao lado do espelho. Suspira.

A multidão começa a preencher todos os lugares do Templo Pátrice da Capital. O lugar está enfeitado como poucas vezes já havia sido: variadas flores e folhagens misturando-se com sedas e tules, velas esculpidas com todo capricho e incensos raros a perfumar o ar.  O sol está forte, entra majestoso pelos vitrais. Está tudo preparado, menos o coração dos noivos.
O murmúrio das conversas atinge o lado de fora num volume considerável: são mais de trezentas pessoas vestindo o que há de mais caro e pomposo. Os militares estão com todas as suas medalhas, as mulheres ostentando as mais valiosas joias, os nobres com seus mais ricos veludos e sedas. O contraste com a mensagem escrita nas paredes do templo é gritante:

“Tudo que à terra pertence, na terra permanece. Ao Deus do Espírito, só os tesouros da alma têm valor”.

Por isso, apesar da opulência de seu templo, o Sacerdote Mathya aguarda os noivos com uma túnica lindamente simples, como um asseado eremita.
Andy desce da carruagem, trêmulo, preparando-se para entrar no santuário da religião da qual também pouco conhece. A rainha, vestida magnificamente de veludo carmim com bordados dourados e pedrarias, o espera na entrada.
Ele estranha: sua mãe não viera?
– Onde está minha mãe, minha avó? Com o seu perdão, era ela quem deveria entrar comigo.
– E seus sapatos, onde estão?
Andy olha para os pés descalços e responde muito naturalmente:
– Onde sempre estiveram: guardados. Acho que minha mãe importa mais do que os sapatos.
– Não foi chamada. Não deu tempo. – responde a rainha, nervosa.
Não podia suportar a ideia de que o neto entraria descalço ao seu lado no meio de gente tão ilustre! Andy também fica possesso: como assim não chamaram sua mãe?
Deveriam estar todos aí: ela, Felix, Andrew, Evelyn, Dennis, as gêmeas… sua Heidi! Não pode acreditar, que injusto! Será que nem essa alegria poderiam ter lhe dado nesse dia? Estaria Dona Cedes orgulhosa dele? Com certeza muito mais que sua avó. Ele finalmente estica o braço para ela.
As oito damas de honra? Não conhece nenhuma. Nem parece que quem casará será ele: nem a noiva, teoricamente, escolheu. Entra sendo cercado pelos olhares dos convidados que também não conhece. Um ou outro nobre com quem conversou muito superficialmente, mas só. Tranquiliza-se um pouco ao chegar perto do altar e ver Ian Poler com os vários padrinhos e madrinhas que ele também não escolheu.
É tudo muito surreal, parece um teatro, ou talvez seja mesmo. É deixado pela avó com uma reverência formal no local onde deve esperar sua futura esposa.
O rei aguardava logo ao lado, a expressão demonstrando orgulho do vistoso neto, ainda mais bonito pelas roupas, mas também severa, extremamente reprovadora por ele estar descalço e repreendendo-o por antecipação, caso queira fazer alguma coisa para estragar a cerimônia.
Quer fugir, lógico que quer, mas está se sentindo tão pressionado que mal consegue se mexer. Parece que sua mente travara todo o seu corpo. Sente-se ali no meio como um animal preparado para o sacrifício, como uma criança perdida no meio do mar. Sente-se extremamente só no centro daquela multidão.
Mathya, este sim um velho conhecido, lhe sorri orgulhoso: sabe do paganismo do príncipe, não esperava sinceramente que um dia fosse casá-lo. Muitos outros sacerdotes pátrices estão assistindo o desempenho dele.
Nesse instante, um gelado na barriga: é ela.
A marcha nupcial começa a ser tocada pela orquestra contratada.
Surge, escura pela luz forte que a envolve, a imagem de sua noiva, logo amparada pelo pai. As pétalas vão sendo esparramadas pelo caminho, percorrido melancolicamente pela garota.
Seu vestido é cor de pérola, brilham as transparências de seus braços que terminam em uma manga larga, que ultrapassa a cintura, enquanto suas delicadas mãos seguram o buquê de rosas brancas. O vestido tem uma cauda discreta, também coberta pelo tecido transparente que forma as mangas e o véu que cobre seus cabelos repletos de flores. Uma simples tiara tripla dourada envolve sua cabeça como uma auréola. E mesmo simples assim, ela está deslumbrante.
Andy nunca viu ser tão magnífico. É uma visão, uma miragem, pronta para se tornar realidade em sua vida. Agora sim isso não parece estar acontecendo, agora que a vertigem realmente começa.
Rose tem a expressão tão morta quanto de um manequim em uma vitrine. Não acredita que esteja ali, que todas essas pessoas não farão nada para salvá-la, nem mesmo Lorence que a espera sentado bem junto à porta de entrada, ou Saul que nem pôde vir na comitiva de seu pai por ser apenas um tratador.
O que fazer agora que já botou os malditos pés dentro do templo? Seu pai segura fortemente seu braço, com medo que ela fuja antes de terminar o interminável trajeto. De que adiantaria? Não há para onde fugir, não agora.
É deixada em frente ao noivo que baixa os olhos, envergonhado por estar submetendo essa jovem a tudo isso.
A voz do sacerdote começa a soar, nenhum dos dois consegue discernir suas palavras. Parecem um emaranhado de sons atrapalhando seus pensamentos. Rose mal consegue segurar as lágrimas. Andy olha para ela de vez em quando, com profundo desejo de consolá-la.
Em meio aos seus pensamentos, ouve as palavras de Mathya:
– Vossa Alteza Real, príncipe Andy Jenniz Mideline, aceita a Viscondessa Rose Laetitia Junas Philip Von Richmore Harmand como vossa legítima esposa, para amá-la e respeitá-la, todos os dias de vossas vidas até que a morte vos separe nesta Terra?
Andy emudece.
Olha para o rei que quase esmaga o cetro, tendo a mão da rainha repousada sobre a sua delicadamente, pedindo calma. Essa visão, incrivelmente, acalma-o: mesmo velho e enlouquecido pelo poder, o seu avô Lucius tem a mão da rainha sobre a sua. Ao olhar para Poler, embora seu olhar seja muito mais sereno, perturba-o ver que uma alma tão amorosa não tinha mão nenhuma a lhe confortar.
 Quer essa mão delicada, quer abrir seu coração a essa mulher!
Olha por fim para Rose, que, espantada com a demora da resposta, levanta os olhos doces como se perguntasse: por que não responde? Por que hesita em tomar-me como sua mulher, sendo que sabe o quanto me quer e que nunca encontrará olhos como os meus? E lendo todos esses olhos, nesses intermináveis segundos, Andy fecha os seus e se joga no abismo:
– Sim.
A pergunta é repetida, palavra por palavra a Rose, que as ouve como o riscar de um giz empedrado no quadro negro. Ela teme o que sua boca pode responder, ela teme errar a palavra. Mas sabe que seja qual palavra escolher, será a errada. Aperta o buquê, não olha para ninguém, aperta as pálpebras já fechadas e cospe:
– Sim! – é um sim assustador, soltado com ódio, com vontade de completar dizendo “pronto! Não era isso que vocês queriam?!”.
Segue a troca de alianças. Andy tinha-as guardadas em seu bolso esquerdo. Seus dedos procuram os dela, sua mão está trêmula como as de sua noiva. Sente-se a algemando, acorrentando-a com o anel de ouro em seu delicado dedo. Ela, sem nem mesmo olhá-lo, desliza o grande anel de forma frouxa, obrigando Andy a terminar de colocar.
Os dois ouvem atentos às palavras finais do sacerdote:
– Sendo assim, tendo a bênção do Deus Supremo e nosso amado Deus das Almas como testemunha, eu vos declaro marido e mulher. Pode beijar vossa noiva, Alteza. – sorri o bem intencionado pátrice.
Andy ergue as sobrancelhas e suspira, tenso. Olha para sua esposa, que levanta os olhos, assustada, e logo volta a baixá-los. Que linda esposa, que linda lebre indefesa foi para ele capturada. Quer fazer dela a mulher mais feliz desse mundo.
Levanta seu delicado queixo com a ponta dos dedos e toca em seus lábios com carinho, sentindo o calor de sua respiração, a maciez da pele e da boca de uma mulher. Que delícia.
Só lamenta ter sido logo no altar o seu primeiro beijo.
Antes de afastar-se completamente, Rose baixa a cabeça e dá um passo para trás, devagar, enojada. Deixa uma lágrima rolar e derruba no chão seu buquê. Olha para todos que a rodeiam, perdida, irritada. Assim que a música volta a tocar, a nova princesa segura as saias do vestido e engata uma corrida veloz para fora da igreja, surpreendendo a todos. Lorence tenta contê-la, mas Marguerite não deixa:
– Não se preocupe. Ela já está casada: pode fazer o fiasco que quiser.
Os comentários se tornam ensurdecedores, a orquestra tenta continuar, mas acaba parando. Andy olha para onde saiu sua mulher, triste, magoado. Acaba sentando no altar onde se ajoelharam para jurar amor eterno: que amor?
Lucius ordena, num sussurro grave, que Andy procure a esposa imediatamente. Apático, ele levanta, desliza os dedos pelas mechas de seus cabelos encaracolados em frente ao paletó. A aliança enroscando nos fios castanhos, deslocada em sua mão ao lado do anel pagão que ganhou de Ada. Puxa o ar. Percorre com o passo apertado o longo corredor, pisando as pétalas com seus pés descalços. Ao fim do caminho já está correndo, a garganta travada pela agonia, pela humilhação.

Vede, oh povo de Elderwood, seu patético príncipe sendo abandonado. Contai a todos, logo e ainda por muitos anos, essa história de rejeição tão vergonhosa.

Após os padrinhos deixarem o templo, seguindo o cerimonial combinado, os convidados devagar começam a deixar seus acentos e ir para onde a festa acontecerá, com ou sem os noivos: o glorioso salão de festas do Palácio de Pedra, que há tanto aguardava uma festa como essa.
Poler comprime os lábios, sentindo muitíssimo pelo ocorrido. Ver seu garoto suspirando em seu quarto por ela e se deparar com uma cena dessas depois é de cortar o coração. Espera que eles se entendam. Formam um casal tão adorável.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Capítulo 25 - "Preparativos"

 

Na manhã seguinte, na mesa do café, Andy conversa com seu Conselheiro preferido visivelmente mais calmo. Há uma infinidade de alimentos disponíveis, entre pães, queijos, castanhas, frutas e até mesmo flores que dividem espaço com sucos, leite e diversos chás ainda fumegantes. Seus olhos sorriem discretamente por trás do vapor que exala de sua xícara.
O rei chega até eles acompanhado de pequena comitiva de empregados. Sentando-se à cadeira ao seu lado, Lucius fita o neto com ar altivo e infla o peito para avisar:
– Já negociei seu casamento, Andy. Será logo.
– E esse logo é quando? – pergunta, dando mais um gole no chá.
– Esse logo é mês que vem.
O rapaz engasga arregalando os olhos, repetindo a cena do começo de tudo. Lucius ignora sua tosse e fala num tom tão prepotente que soa esnobe demais até mesmo para ele:
– Por mim seria amanhã mesmo, mas os preparativos exigem tempo. As costureiras logo irão visitar sua noiva.
Andy ouve balançando a cabeça, inconformado:
– Para que tanta pressa, Lucius? Por que não pode deixar as coisas fluírem? Eu acabei de conhecer a moça, agora vai pegá-la de susto com um bando de costureiras falando “há um mês você era uma menina, agora é uma noiva e em mais um mês será uma mulher casada”? Como acha que ela vai se sentir?
Não tem resposta, então continua:
– Você não pode mexer assim na vida das pessoas, Lucius! Se toda mudança precisa de tempo, uma dessa importância precisa de muito mais!
O rei lhe encara com gravidade:
– Quanto tempo mais tem um velho como eu, Andy? Sim, eu estou com pressa para ver meus bisnetos porque posso morrer a qualquer momento!
A discussão deixa a mesa e todo o palácio em silêncio. Andy fita o avô, suplicante. Não sabe mais o que dizer. Quer entendê-lo sim, ele é idoso: mas, por isso mesmo, ele já viveu sua vida! E agora quer viver a dele também? Não é justo!
– Não, meu avô, isso é mentira sua, pois bisnetos você tem aos montes por aí! Isso é implicância comigo! Pura e simples! Por que, meu avô? Por quê?
– Porque o rei sou eu. – levanta-se, acha que com essa frase qualquer questão pode ser encerrada.
Não para Andy, que brada:
– Quantas vezes eu preciso repetir até que entenda que isso te faz responsável pela organização do reino e não meu dono?! Se está sem nada para fazer, eu te deixo algum trabalho no governo! – levanta-se também.
Talvez em alguma futura aula o herdeiro deva aprender que mexer no ponto fraco de alguém nunca vai colocá-lo numa situação mais confortável, bem pelo contrário. Tanto que a face do rei parece incendiar depois de sua sentença. Lucius urra:
– Cale-se ou volta para a masmorra!!
Um tenta superar o outro em volume, enquanto o resto do reino tenta fazer cada vez mais silêncio. Poler acha necessário interferir:
– Por favor, Vossa Majestade, não posso permitir que tal coisa se repita. Sua Alteza é um herdeiro e não um criminoso. Assim como não devia ter acontecido uma primeira vez, um simples desentendimento não pode acarretar pena tão grave, ainda mais a um membro da realeza.
– Já entendi, Poler, não farei isso. – corrige-se o rei, sem paciência – Mas ainda quero Andy calado.
– Não vou calar. É minha vida! Minha vida é tudo que eu tenho e pertence apenas a mi-…
Pah!!!
A bofetada estoura quente contra seu rosto. Uma interjeição de susto toma conta do lugar.
O peito do jovem se enche de fúria e de mágoa, como uma água morna e pesada pronta para espalhar-se pelo corpo depois de tomar seu coração. Essa energia densa chega até seu punho e tenta guiá-lo. Mas Andy resiste firmemente: não quer perder a razão. Ele levanta seu rosto novamente, retoma sua postura e cospe sua frase final:
– Quem perde o dom do diálogo tende a comportar-se como o resto dos animais. – e deixa a mesa.
A tendência de Poler é seguir Andy, mas dessa vez não sabe o que poderia fazer. Permanece sentado, olhando para o rei, assustado com a própria atitude. Sim, está velho, e cada dia mais louco. Porém, orgulhoso como sempre, não corrigiria seus erros. Não desmarcaria o casamento, nem mesmo remarcaria.
Emanuelle, ainda que de longe, observava a cena ajeitando o bastidor de seu bordado e deixa uma pontinha de sorriso escapar. Ainda ouvindo o som do tapa em sua memória. Pah! Ah, deve ter doído tanto.

Andy só consegue pensar em Rose, deitado em sua cama aquecida pelos raios da manhã:
– Sai da minha cabeça, menina, eu quero trabalhar. – suspira.
Não adianta adiar, nem pensar que nada mudou ou mudará: o nome dela está presente em seu pensamento como jamais nenhum nome esteve. Seu sorriso de menina, suas frases decididas: um o antônimo do outro. Olha para o lado e imagina-a deitada ali, seus cabelos cacheados, brilhantes, espalhados pelo colchão, dominando o travesseiro, entrelaçados com os seus cachos. Uma leve lembrança do seu perfume surge no ar, junto ao medo da certeza de já estar apaixonado.

***

As semanas anteriores ao casamento do herdeiro do trono são terríveis, a maior correria possível para todos os membros da realeza, empregados do castelo, doceiras, cozinheiras, costureiras do reino todo e todos os súditos que pretendiam presenciar o evento nem que fosse da porta do templo. Parece que a loucura do rei chegou para arrastar a todos como uma ressaca depois do temporal.
O casamento será de dia e tudo estará arrumado no Templo de forma a valorizar a luz do sol. A cerimônia será unicamente pátrice, como é a noiva e sua família.
Todos os trajes encomendados em prazo tão curto obrigaram os nobres aldéus a chamarem costureiros de outros reinos para ajudarem na confecção. As sedas de Myhr tiveram os estoques esgotados.
Foram convidados diversos governantes de territórios vizinhos e estes marcaram presença certa no tão honroso acontecimento. Todos os filhos de Lucius III e suas famílias também virão – todos os que ainda falam com ele. A orquestra que animará o festejo será trazida de Daichwood, sendo convocada também para a marcha nupcial, canção que parecia trilhar os pesadelos de Andy e Rose, perturbados o mês inteiro e a todo instante devido ao acontecimento.

A Rose é dada a opção do vestido que quiser, o rei o pagará, não precisa nem pensar no preço. Mas o que lhe importa isso?
– Quero usar o vestido de noiva de minha mãe. – responde desinteressada, sem deixar margem para discussão, afagando a pacata Bianca sobre o braço da poltrona de seu quarto.
– Rose! – Marguerite protesta – O vestido de mamãe? Entendo que seja bonito, que gostava muito de nossa mãe, que sempre quis ser como ela, mas não vou deixar que o escolha se vai ser rainha, irmã! Se tem direito ao vestido mais pomposo e caro!
– Disse que entendia que eu gostava muito de mamãe e que sempre quis ser como ela.
– Sim, foi o que eu disse.
– Se entende mesmo, pense nisso quando eu entrar na igreja usando o vestido dela.
Rose levanta da poltrona do quarto e põe-se da porta para fora, dispensando as quatro costureiras que o rei lhe havia mandado, falando:
 – Nem se incomodem, senhoras, que o vestido já está feito.

            Quanto a Andy, era medido, enrolado em tecidos e alfinetado em seu quarto. Casará de cinza azulado, uma roupa bem clara, um primor da alta costura. Já sabem até seus sapatos, fator que Andy obviamente pretende ignorar.

***

Rose chorara a noite toda. Não suporta a ideia de ter sido vencida, de estar perdendo tantas aulas sendo produzida para agradar a alguém que mal conheceu. Ao final do dia perderia a virgindade com um homem que não ama, por quem não sente nada.
Sentada na cama, tendo sua felpuda gata a olhar para ela, Rose reclama chorosa:
– Ai, Bianca, é hoje!
Tapa o rosto com as mãos dando um discreto grito de agonia.
Alguém bate na porta chamando-a para começar os preparativos. Rose é tomada pelo silêncio e sua expressão é trevosa, exalando ódio de todas as pessoas do mundo. Todo mundo é culpado pela sua situação: todos pensam que juntando duas pessoas bonitas e inteligentes se produz a felicidade instantânea. Se esquecem que formar um casal não é como cruzar cães de raça: observa-se os aprumos, une-se os indivíduos, espera-se a cria sair perfeita. Não, a vida humana é diferente! Olhos verdes não são suficientes para se amar alguém, para se querer deitar com alguém esta noite! Será que ninguém vai perguntá-la o que ela quer?
A pessoa volta a bater na porta. Rose tem vontade de se matar. Olha sua formosa gata, tão indiferente: já dera tantas crias, de tantos gatos. Humanos são complicados demais. Rose já estava com dois namorados, que diferença faria mais um? Ela não o escolhera, essa é a diferença. Foi seu pai que nunca se preocupou com sua menina que escolheu e determinou e ordenou e obrigou… Ah! Quer matar-se!
Prostituição: é esse o nome do que fará essa noite! Vendendo seu corpo para ganhar um título! Por que não poderia ser seu pai a dar-se ao príncipe? Por que ela? Não tem nada a ver com isso!
Batem novamente em sua porta. Rose grita com toda a potência de sua voz.

***

Andy também não dormiu. Está apavorado. Qualquer noivo, por mais que ame e conheça sua futura esposa se apavora, quanto mais um que não conhece a mulher com quem passará o resto da vida.
Em meio ao seu medo, fantasias de como viria a ser essa cerimônia, a vida a dois, os filhos. É assim tão terrível se casar?
O que será feito de sua vida essa tarde? O que essa garota fará dele? Conseguiria fazer-se o homem da vida dela assim de repente? Fugiria, realmente fugiria… se não tivesse se apaixonado.
– Seu idiota. – sussurra para si mesmo deitado em sua cama.
Batidas soam na porta e seu título real é repetido do lado de fora na conhecida voz de uma empregada. Já é hora de acordar.
Andy pula da cama, exausto, porém com a mente fervilhando. O que fazer agora? O que fazer agora?! Olha-se no espelho, puxa os cabelos para cima:
Argh! Olhe para mim! – diz a si mesmo – Eu não passo de um moleque! O que eu vou fazer naquele altar??
É surpreendido pelo som da porta do quarto sendo aberta, a luz vindo mais intensa do corredor, alcançando seus pés descalços, marcando o vulto esguio de Ian Poler. Só mesmo ele para já estar acordado e vestido a essa hora.
Tendo ouvido seus resmungos, o Conselheiro lhe diz sorridente:
– Não exagere, Andy. Um moleque não precisaria se barbear, como tu bem que estás precisando.
– Barba é só um detalhe, um disfarce para um moleque. – esconde o rosto entre as mãos e chacoalha a raiz dos cabelos, caindo na cama novamente.
Poler senta a seu lado, acaricia sua cabeça com paciência. Levanta-o:
– Sei que sabes ser um homem. Um belo homem que é capaz de fazer muitas mulheres se apaixonarem. Não é de ser ainda um moleque que tens medo: tens medo de ser esse homem que te tornaste assim tão rápido.
Andy senta, fica olhando para o nada. Ouve essas palavras atentamente, tenta identificar-se com elas: talvez, talvez realmente tenha medo do homem que se tornou. Tenha medo por não ter notado isso antes, não ter tido tempo de se descobrir como um, não saber lidar com uma mulher da maneira que deve. Não se conhece apaixonado, sempre foi muito prático e até desatento com seus sentimentos. Sim, isso lhe dá medo.
Poler põe a mão em seu ombro:
– Gostas dela, não gostas?
– Eu não sei se eu sei quem ela é. – olha-o aflito – Eu mal tive tempo de conhecê-la.
– Ah, meu filho querido, o amor não é sempre assim. – sorri terno – A gente não consegue determinar e impor condições sobre quando e de que forma ele aparece na nossa vida. Ele simplesmente aparece. Nossa única intervenção é decidir se o assume ou o esconde de nós e dos demais. Eu sou teu amigo, sabes que não precisas esconder nada de mim. Se não quiseres de forma nenhuma casar-te com Rose, dizei “não” no altar e depois suportai as consequências. Agora, pensai bem, Andy, pois acho que teu coração não quer fazer isso. Eu te conheço, nunca te vi assim.
– É, eu nunca estive assim. Fui derrotado. Não sei lidar com sentimentos, não sei negá-los.
– Tu és puro. Nunca te envergonhes disso.
– De que adiantam meus sentimentos, Poler, se ela não quer nada comigo?
– Como podes estar tão certo disso? E, no mais, convivendo contigo não há frieza que dure. Eu sinceramente acho que não.
Andy dedica um sorriso triste ao seu professor. Abraça-o, num suspiro profundo. Poler bate de leve as mãos nas suas costas, como se consolasse uma criança que caíra do balanço. Andy se afasta novamente:
– Se acha isso, por que não se casou?
– Bem, Andy, eu… – explica desconsertado – Eu vivo para trabalhar desde que me conheço por gente. Tua amizade é a maior que eu já cultivei, mas amores, bem, eu nunca cultivei nenhum. Namorei na juventude, porém me perdi tentando ser alguém importante. Só que às vezes me lembro de que estou envelhecendo sozinho. – aperta seu ombro – Pelo menos ganhei um filho há uns cinco anos.
Andy o fita com carinho. Já se sente um pouco mais calmo. Quer sim casar com a moça, mas queria que tudo tivesse sido diferente. No mínimo queria ter pedido sua mão pessoalmente e ter visto um sorriso de satisfação em aceitá-lo. Mas não viu e isso o deixa tremendamente inseguro. Aliás, o único sorriso que anda vendo ultimamente está sendo o de Poler: como ele consegue ter sempre essa leveza, essa tranquilidade, mesmo com todo mundo enlouquecendo à sua volta? Agradece à Deusa por tê-lo ao seu lado.
– Obrigado, Ian. Obrigado por existir.

A empregada volta a bater na porta já aberta chamando para começar os preparativos. Poler também pensa em começar a se arrumar, afinal, é padrinho.