Na manhã seguinte, Ian Poler se apresenta para trabalho. Procura Andy
por todos os lados sem encontrá-lo. Isso toma um tempo considerável em tão
colossal castelo, porém o mestre sabe os locais de preferência de seu aluno: a
biblioteca, o gabinete de trabalho, seu quarto, o haras, o lago, o bosque…
Nada do príncipe. Estranha.
Na volta ao interior do Palácio, acaba por esbarrar com o seu colega de
Conselho, Uli, notavelmente abatido, a quem pergunta:
– Campbell, viste o príncipe esta manhã? Ele não costuma sair tão cedo
antes de comunicar-me.
As mãos do Conselheiro vão de encontro aos seus ombros, que são
apertados de forma aflita:
– Poler, ainda bem que eu te encontrei! Eu precisava contar isso a
alguém!
– Contar o que? – o cenho de Poler se contrai
gravemente, seu coração toma um ritmo acelerado.
Os dois se retiram da sala de recepção pegando a saída dos fundos onde
têm acesso ao jardim central. Próximos ao imenso chafariz, barulhento o
suficiente para evitar que alguém desavisado escute o que não deve, Uli
confidencia a Ian tudo o que ocorreu na noite passada. Poler não se conforma:
– Eu não posso acreditar! Ele ainda é uma criança! Como pudeste
ter chamado o carrasco, Uli? Devias ter tentado impedi-lo de algum jeito!
Enlouqueceste junto com o rei??
– Eu estava confuso! Pensei que se contrariasse o rei numa hora
daquelas, iria acabar com tudo nas minhas costas! Seria eu que teria ido parar
na masmorra, talvez! Não sei! – torce os dedos nervosamente – Mas numa hora
dessas, eu até preferia, viu? Nunca tive tanto remorso na vida...
Ian
queria estrangular seu colega nesse momento. Até visualiza a cena, comprimindo
os olhos, concentrado no lenço pomposo enrolado no pescoço de Campbell: puxaria
as pontas dele e apertaria bem forte!
Não,
não quer matá-lo, quer apenas que ele acorde! Quer puni-lo por ser tão passivo
e mole, por ser tão... covarde! Suspira profundamente com o maxilar travado,
fazendo o máximo para se segurar. Não é hora de perder a cabeça, pelo
contrário, é hora de agir. A culpa é do rei e apenas dele.
– Há alguma maneira de tirar meu pequeno de lá?
– Talvez. Mas pelo humor de Sua Majestade, será dar murro em ponta de
faca, meu amigo. Eu sinto muito.
– Não, eu não posso deixar isso assim! Tomarei providências agora mesmo!
– Não, Poler! – tenta impedi-lo, mas Ian sai com passos rápidos e
decididos – Eu não devia ter contado nada para ele... O rei vai me matar.
Poler persegue o rei implorando:
– Ele simplesmente ainda não sabe o que fala!
– Eu fiz isso para ele aprender mais rápido.
– Deus Pai, isso é absurdo!
– Agora eu sei com quem ele aprendeu a falar alto daquele jeito, Senhor
Poler. Me dê licença, pois o que aconteceu ontem à noite já foi o bastante para
minha cabeça.
– Mas, Majestade...
– Chega, ouviu bem? – fala numa rispidez assustadora – E da próxima vez que
quiser sua opinião, eu o procurarei. É para isso que eu te pago. Agora, se
retire.
– Sim, Majestade. – termina, cuspindo veneno, o Conselheiro.
Sai querendo derrubar as paredes. Pega o caminho de volta ao Jardim torcendo
para não encontrar mais ninguém. Aperta tanto as mãos que chega a enfiar as
curtas unhas na carne. Dói. Mas não tanto quanto imaginar seu filho adotivo
sendo torturado por uma coisa tão tola.
Ora, mesmo que fosse grave! Poler se sente o pai dele e lhe machuca
imaginar que não estava lá para protegê-lo quando ele precisou, e que mesmo
agora não pode fazer nada. Comprime os lábios, sente a garganta trancar. Há quantos
anos não se permite chorar? Quer ficar só.
Atravessa as cortinas de véus que levam ao Jardim Oeste, parte anexa ao
Jardim Central, mas mais reservada. Um pequeno e silencioso paraíso sob sacadas
de onde escorrem trepadeiras abundantes. Ladeando o formoso caminho de pedras,
dois pequenos veios d’água cantam e perfumam o trajeto para se encontrarem mais
adiante e formarem uma doce cascata artificial. Então seguem totalmente para
fora do prédio e desaguam no imenso lago. Os cavalos bebem desses veios. Os
funcionários refrescam os ouvidos com seu som tão manso. Os Conselheiros vêm se
esconder do resto do mundo ali. Ou pelo menos era o que acontecia hoje.
Poler sai do caminho de pedra, pula o veio d’água de sua direita, passa
até os bancos de descanso e se esconde abaixo da gigantesca trepadeira de
brincos-de-princesa.
Passando as mãos em suas folhas e cheirando suas flores, Poler inspira
fundo, fecha os olhos, tentando tirar esse nó de sua garganta, nem que fosse se
permitindo chorar de uma vez. Por que é tão difícil?
Distrai-se demais. Quase cai em um buraco bem escondido por lá.
Estranha: é um buraco grande demais, como nunca o percebeu ali? Quem o cavou?
Por quê? Olha mais atrás e percebe que havia virado a estátua da Deusa, sem
notar. “Passagem secreta, em pleno Jardim Oeste? Não posso perder essa...”,
pensa. Olha para os lados e não vê nenhum jardineiro. Senta-se no chão e pula
ali dentro. Há uma escada logo à frente, não muito escura. Ele a desce ouvindo
seus passos reverberando nas paredes.
É em espiral e não tão longa quanto esperava. Há uma tocha na parede do lado
esquerdo, com uma gárgula a segurando. Poler toca-a e ela deita com facilidade,
fechando o buraco lá de cima com um ruído grave.
Rrrrooorh...
Conclui: “Agora já sei como sair”.
Pouco depois, mais abaixo, encontra uma porta, que parece dar acesso a
um lugar mais iluminado e mais quente. O Conselheiro vai até lá e entra devagar
na tal sala: tem muitas cortinas velhas e é toda rodeada por velas acesas, um
cheiro suave de incenso, alguns rabiscos nas paredes que ele não entende o que
possam significar à primeira vista.
Só.
Poler olha em volta, bate o salto da bota no chão e o barulho que faz é
seco. Tem certeza que não tem ninguém, fala alto:
– Velas? Tantos rodeios só para chegar em uma sala redonda cheia de velas?!
– Andy? – pergunta uma voz fraca e velha, vinda de trás de uma cortina.
Poler leva um susto. Pergunta rápido:
– Quem és?!
– Ora, que pergunta boba, meu filhote. – responde a voz – Trouxe as velas que
eu pedi?
– Que velas?
– Mas você nunca esquece… – diz a velha abrindo a cortina, quando de repente nota
o seu engano – Você não é o Andy… quem é você?
– Eu é que te pergunto: quem és e o que estás fazendo neste Jardim?
***
Andy está com frio. Vapor sai de sua boca. Pão e água foram colocados lá
enquanto dormia. Tem muita fome, mas mal consegue se mover para pegá-los. A dor
domina o seu corpo.
Já há uma grossa casca de sangue coagulado em cima das feridas do
chicote e seus pulsos estão completamente roxos. Não está tendo nenhum
tratamento especial, o chão onde está deitado é o mesmo dos prisioneiros
rebeldes de seus ancestrais e não duvida que jamais em toda história tenha sido
lavado com algum empenho.
Será o primeiro príncipe a misturar seu sangue à urina seca de ratos e
assassinos? Ele que apenas ergueu a voz em nome de sua liberdade? As mãos que
até hoje trabalharam para ajudar seu avô e para encher o interior do Palácio de
melodias, mereciam ser esmigalhadas assim?
– Mãe... Socorro... – suspira lutando para as lágrimas não caírem.
Andy detesta chorar. Nesta situação, chorar seria como dar a vitória a
Lucius, pelo menos em sua opinião: ele quer vê-lo amedrontado, implorando por
misericórdia, choroso e manso. Não, ele não… Ele aguenta a barra, não aguenta?
Soluça, incerto da conclusão.
Queria vingar-se, se pudesse. Com certeza, naquele momento, se estivesse
frente a frente com seu avô e com a energia necessária, era o que ele faria.
Tenta esquecer essa ideia terrível e comer o pão que lhe trouxeram. Sabia
do esquema da masmorra: aquilo não seria só o seu café, como seria seu almoço e
sua janta.
Ele estica o braço ferido e tenso e agarra o único e pequeno pão. Com os dedos
ralados ele arranca um pedaço e põe o resto na bandeja. Põe o pedacinho na boca
e mastiga devagar, faz voltar o que quase engoliu e mastiga tudo de novo, para
enganar o estômago na medida do possível.
Tinha aprendido isso com o pai, na época que não tinha nem o que comer
em casa, por causa da colheita perdida. Viviam dividindo pouco, quase nada, com
os vizinhos. Comia absolutamente tudo que lhe fosse oferecido, até raízes
verdes, até… carne.
Naquela época aprendeu o que é a fome, e, com isso, a ser verdadeiramente
humilde. Depois sua aldeia conseguiu se recuperar aos poucos e logo novas
colheitas floresceriam. Mesmo assim, nunca esqueceu o valor da humildade e
aposta que toda sua família também, mesmo agora tendo do bom e do melhor.
Minha nossa, como sua vida tinha mudado. Ele nunca esperou que fosse
acabar lá: príncipe. E que o seu maior problema não fosse ser o governo nem as
guerras e sim a futura noiva, que ele nem mesmo conhece, mas da qual já pegou
asco.
Refletir estava sendo ótimo, fazia muito tempo que Andy não parava para
lembrar-se do que foi, comparar com o que é. Ele sonha: “Como minha mãe
reagiria a me ver crescido? A me ver vestido de tecidos bordados, montado em
cavalos de raça, gerenciando centenas de funcionários. Como ela se sentiria a
me ver nesse momento, tratado como criminoso, dormindo entre os ratos…?”,
suspira. Se sente só. Daria tudo para estar em casa, cortando palha, tirando
leite... Cansado, mas feliz.
***
Poler conversa com a sua nova amiga:
– Quer dizer que a senhora sempre esteve aqui? Desde a construção do palácio?
– E já havia nascido muito antes! Sabe, não é
fácil descobrir um esconderijo sozinha, com passagens secretas e tudo mais,
você precisa de ajuda! Quem me ajudou foi Timothy Minton, um dos projetistas
chefes do Palácio de Pedra. – diz orgulhosa.
– Quantos anos tem a senhora? – pergunta impressionado.
– Se não me engano… se bem que com a minha idade eu não posso mais confiar na
minha memória, – ri – devo ter meus novecentos e alguma coisa. E você, pelo
contrário, me parece muito jovem. Te dou... vinte anos, acertei?
– Não, longe. – sorri certo que foi uma exagerada gentileza dela – Eu tenho
quarenta e um.
– Minha nossa, e eu achei que eu não aparentasse a idade! – brinca a
simpática senhora.
Poler sorri e entra na brincadeira:
– Eu te daria cinquenta!
Ela ri:
– É muito gentil, senhor...
– ...Poler. Ian Poler, sou o Primeiro Oficial político, Terceiro Conselheiro
Real, professor nas horas vagas. Não que mereça tantos títulos, mas fazer o que
se só sei trabalhar? – diz apertando sua delicada mão.
– Tem a mão forte e quente, meu jovem. – elogia a senhora – Mãos como essas são
de pessoas com muita força interna. Mãos de pessoas que nasceram com uma
grandeza inigualável. E creio que em você, minha teoria se encaixa
perfeitamente.
– Grato. Creio que deves estar aqui por uma razão muito especial, estou certo?
– Como sempre, meu rapaz.
– O que fazes aqui, isolada?
– Ora, medito, tento achar respostas de questões que só serão feitas por
pessoas de mãos como as suas, que merecem me encontrar para tê-las. Eu era
conhecida como a Conselheira Extraoficial dos primeiros reis, mas depois todos
que me conheciam morreram, eu não era mais conhecida como nada! – ri – Foi um
felizardo em me encontrar aqui, pois só o príncipe, e agora você, me conhecem
por aqui e podem ter minhas respostas.
– Tem uma resposta que eu gostaria muito de ter neste momento. – lamenta Poler
– Como coisas assim podem acontecer com as pessoas boas?
– Não entendo, Ian. Afinal, o que aconteceu com meu filhinho?
3 comentários:
bom dmais MAAAAAA!!!!! perfect!
Má você conseguiu mostrar toda a beleza e atitude de Andy neste desenho. Esta parte dois está demais , as emoções a flor da pele do lindo príncipe literalmente, que avô horrível .não é a toa que Jason sumiu no mundo,sem deixar vestígios.
Estou adorando conhecer os personagens através das ilustrações de Má .é muito melhor juntar nossa imaginação com os desenhos pois assim eles se tornam mais "vivos" na história, e vamos cada vez mais conhecendo Elderwood e seus surpreendentes personagens. Este livro nos levará para lugares inacreditáveis .
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